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A Água é um Direito, Não é uma Mercadoria. Actas da Audição Parlamentar
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I. Introdução

Heloísa Apolónia (Deputada de “Os Verdes”)

II. Painel de oradores convidados

Luísa Tovar (Engenheira)
Chaleira Damas (Engenheiro e gestor cooperativo)
Henrique Carreiras (Presidente dos SMAS de Almada)
Francisco Brás (Presidente do STAL)

III. Período de debate

Carlos Pedroso (Director de Departamento da C.M. Alcácer do Sal)
Herberto Goulart (Ass. de Municípios p/ Estudos e Gestão da Água)
Pedro Ribeiro (Vice-presidente da C.M. do Cartaxo)
Isabel Castro (Deputada de “Os Verdes”)
Nuno Vitorino (SMAS de Almada)
Rui Tomás Marques (Presidente do Colégio Amb. Ordem dos Biólogos)
Chaleira Damas (Engenheiro e gestor cooperativo)
João Faim (Director de Departamento da C.M. da Moita)
Carmem Francisco (A.M. de Sines e da Com. Executiva de “Os Verdes”)
Joaquim Santos (Vereador C.M. do Seixal)
Jorge Gabriel Martins (Presidente A.M. do Bombarral)
Herberto Goulart (Ass. de Municípios p/ Estudos e Gestão da Água)
Manuela Cunha (Membro da Comissão Executiva de “Os Verdes”)

IV. Conclusão

Heloísa Apolónia (Deputada de “Os Verdes”)

I - INTRODUÇÃO
 
Heloísa Apolónia (Deputada de “Os Verdes”)
 
Quero, em primeiro lugar, em nome do Grupo Parlamentar “Os Verdes”, dar-vos as boas vindas.
 
Têm convosco uma pasta onde poderão encontrar uma breve informação sobre os objectivos desta audição parlamentar e também sobre o nosso painel de oradores convidados. Encontrarão, nessa pasta, algumas intervenções das deputadas de “Os Verdes”, que foram produzidas nesta legislatura, na Assembleia da República, as quais integram questões relacionadas com a água, para que possam conhecer algumas das preocupações que levantámos nesta casa sobre a matéria.
 
Eu queria passar, de seguida, à apresentação da mesa, transmitindo, em primeiro lugar, um pedido de desculpas a todos os presentes, por parte do Eng.º João Bau que se encontra neste momento doente, e que por esse motivo não pode aqui estar e prestar o seu contributo, o qual enriqueceria muito esta audição.
 
Temos então na mesa Luísa Tovar, Engenheira Civil, com mestrado em Engenharia do Ambiente, detém uma experiência profissional, quer ao nível nacional quer ao nível internacional, no sector das águas e actualmente é Engenheira do INAG na área do Planeamento de Recursos Hídricos; Chaleira Damas, Engenheiro Mecânico, foi Director-Delegado dos Serviços Municipalizados da Câmara Municipal de Setúbal e é actualmente gestor cooperativo; Henrique Carreiras, Vereador da Câmara Municipal de Almada, Presidente do Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de Almada; Francisco Brás, Presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Administração Local, que foi funcionário de Serviços Municipalizados de onde lhe advém também experiência nesta matéria; Isabel Castro, Deputada de “Os Verdes”; e por fim, eu própria, Heloísa Apolónia, também Deputada de “Os Verdes”.
 
Feitas as apresentações, gostaria de referir que esta audição parlamentar visa a auscultação de um conjunto de entidades, de associações e de interessados sobre a privatização da água. O objectivo é saber das suas perspectivas, das suas experiências e dos seus conhecimentos concretos relativamente ao tema que propomos para debate, e promover, desta forma, uma reflexão conjunta, que constitua um contributo para uma abordagem mais profunda ao nível parlamentar da problemática da gestão da água. “Os Verdes” pretendem, pois, que a Assembleia da República venha a debater com profundidade as opções de gestão da água no nosso país.
 
O certo é que a política que foi desenvolvida pelos sucessivos Governos, deste a década de noventa, foi no sentido da entrada do sector privado na gestão da água. Este Governo, por seu turno, já deixou expressa, de uma forma muito directa, a sua intenção de privatização do sector da água, quer através da privatização da Águas de Portugal, ainda que sem data prevista, quer através de regimes de concessão a empresas privadas dos sistemas em baixa.
 
“Os Verdes” consideram que é importante ter presente que não estamos a falar de um sector qualquer - estamos a falar de um sector que é estratégico, de um sector que é determinante em termos da definição dos modelos de desenvolvimento, que tem implicações a diversos níveis, nomeadamente ao nível do ordenamento do território, ao nível ambiental, ao nível da saúde pública, ao nível social e, portanto, os modelos de gestão, e as opções tomadas relativamente a essa matéria, têm repercussões claras ao nível da estratégia de desenvolvimento do país.
 
Por outro lado, quando falamos da água, não estamos a falar de um bem qualquer, que seja susceptível de entrar no mercado, e de ficar sujeito às regras de mercado como outros bens.
 
Desde logo, porque estamos perante um direito que assiste a todos os indivíduos e a todas as comunidades. A água é um direito! Não pode ser negada a ninguém, sem ela não é possível viver. A água é um património comum da humanidade, é um elemento natural, renovável e essencial, que constitui o suporte de vida no planeta. Trata-se de um direito fundamental e é preciso, na perspectiva de “Os Verdes”, olhá-lo desta forma quando se definem estratégias e modelos de gestão.
 
Por isso, entendemos que não é indiferente colocar a questão entre a opção de um modelo de gestão pública ou um modelo de gestão privada da água. Os defensores da privatização tendem a argumentar que isso é indiferente, porque o que interessa é que o serviço se preste às populações. Pois do nosso ponto de vista não é indiferente, porque a gestão pública ou a gestão privada implicam também objectivos diferentes e consequentemente serviços diferentes às populações. A questão, no fundo, está entre uma concepção da água como um direito e como um bem colectivo e aí é a gestão pública que faz sentido; ou uma concepção de água como uma mercadoria que a gestão privada tratará de levar a que com ela se obtenha o maior lucro possível para as empresas.
 
O que pretendemos, então, é que os nossos oradores e os nossos convidados, bons conhecedores da matéria, nos prestem um contributo para esclarecer que implicações teria a privatização da água ao nível do nosso país. Para isso seria interessante uma abordagem de experiências já conhecidas noutros países, ou até de experiências pontuais no nosso país, de adopção de modelos de gestão privada e a análise das consequências que daí decorreram, por exemplo, para as populações e ao nível dos serviços prestados. Seria interessante, por exemplo, atender à relação entre os diferentes modelos de gestão e os níveis da qualidade da água, os níveis de investimentos e de modernizações de infra-estruturas e equipamentos ao longo do tempo e até dos mecanismos de fiscalização dos sistemas.
 
Há muitas questões a colocar. Que implicações ambientais, sociais e económicas decorrerão dessa opção? Que implicações terá relativamente à tão necessária aplicação do princípio ecologista de racionalização do uso do recurso água? O sector da água é ou não tendencialmente um monopólio natural? Que implicações decorrerão da privatização ao nível das tarifas? A privatização é ou não irreversível? Estas são algumas das questões que se colocam, de entre muitas outras que certamente serão levantadas no decurso da audição parlamentar. É esta a reflexão que vos propomos e sobre a qual gostávamos de vos ouvir.
 
 
 
 
II - PAINEL DE ORADORES CONVIDADOS
 
 
 
Luísa Tovar (Engenheira)
 
Bom dia a todos. Agradeço ao Grupo Parlamentar “Os Verdes” o convite e a oportunidade deste debate.
 
A água é um tema lindíssimo - pela matéria em si, pela sua natureza e pelo humanismo, porque falar da água é uma forma de falar de vida. Mas a intervenção que preparei é sobre a parte mais negra deste assunto: a apropriação privada da água, o enquadramento mundial do processo que está em curso em Portugal.
 
São questões pouco faladas e pouco conhecidas pela maioria das pessoas, embora estejam extensamente documentadas.
 
A privatização da água tem vindo a ter um incremento enorme na última década, e sobretudo nos últimos cinco anos.
 
Atravessa-se uma crise mundial do sistema de economia de mercado. Uma das características fundamentais desta crise, que introduz ciclos viciosos de degradação do funcionamento do sistema, é a redução da procura em relação à oferta, isto é, a “insuficiência” de “clientes” que paguem os produtos oferecidos. Cumulativamente, o sistema de produção associado à economia de mercado tende a ser significativamente afectado pela exaustão e degradação dos recursos naturais que ele próprio provoca – com reflexos nos custos de produção e gerando conflitos com o interesse público e a sustentabilidade.
 
Neste contexto, a apropriação da água e a instituição do “mercado da água” torna-se particularmente aliciante.
 
Tem vindo a ser objecto de uma fortíssima investida de grandes transnacionais, com resultados crescentemente conseguidos na política mundial da água.
 
O objectivo das transnacionais:
 
A apetência das transnacionais pela apropriação e mercantilização da água explica-se pelas características muito especiais do “potencial mercado” da água:
 
- É um bem essencial e insubstituível:
 
  • Não sofre crise de procura, isto é, há sempre “clientes” – as pessoas dependem do fornecedor desse bem e pagam o que for necessário. Abdicam primeiro de todos os bens “não essenciais”.
  • A curva de procura da água para abastecimento público é “inelástica” – abaixo de determinados limites de consumo, o aumento de preço não reduz a procura.
  • É “insubstituível” e “essencial” para uma multiplicidade de outros fins: toda a produção de alimentos, a quase totalidade do sector primário e, directa ou indirectamente, grande parte do sector secundário. O “preço” e a “disponibilidade” de água tem impacto em toda a macroeconomia regional.
 
- Torna-se automaticamente um monopólio:
 
  • As infraestruturas são obras públicas – caras, volumosas e modificam o território – não são duplicáveis.
  • O acesso às origens é condicionado e elas não são “infinitas”.
  • São coarctadas as alternativas aos “consumidores”, criando-se uma forte relação de dependência entre os “utilizadores” e o “dono da água”.
 
- É um recurso territorializado:
 
  • A sua utilização é próxima do local de ocorrência. É fisicamente viável o controlo regional por um grupo ou uma transnacional.
 
A meta do processo de apropriação da água é a obtenção do “domínio” da água e a sua rentabilização: transformação em capital produtor de renda na forma de títulos passíveis de comercialização e especulação financeira.
 
Os grupos económicos que adquirem o domínio da água (ou uma fatia significativa dele) tornam-se mais poderosos que a OPEP no controlo da economia mundial.
 
O controlo da água significa muito mais que um “negócio”, substancia um enorme poder político e económico transnacional.
 
E é esse poder político e económico que está em causa.
 
O ataque para a sua conquista tem formas múltiplas, simultâneas e conjugadas, que incluem:
 
- a apropriação das “águas públicas”
 
- a apropriação das infraestruturas públicas
 
- a apropriação dos serviços essenciais da água (abastecimento público, drenagem e tratamento de águas residuais).
 
O processo de apropriação da “água”, dos “recursos hídricos”, da natureza, está em curso.
 
Houve avanços, sobretudo políticos, expressos nas orientações do Banco Mundial, da União Europeia, nos acordos da Organização Mundial do Comércio, especialmente do GATS (General Agreement on Trade and Services), da MERCOSUL, ALCA e outros, assim como em “alterações” institucionais e legais em alguns países.
 
Este processo está a avançar em Portugal.
 
É gravíssimo e tão subtil que quase ninguém se apercebe.
 
Mas o debate de hoje centra-se nos serviços de abastecimento de água e não é possível desenvolver esta outra faceta.
 
A tomada de terreno no campo dos serviços municipais tem sido vertiginosa.
 
Em 1996 a participação privada no abastecimento público era apenas residual, concentrada em França e na Inglaterra, um pouco em Espanha.
 
Em 2001 o Banco Mundial apontava para a gestão/concessão privada de 5% do abastecimento público do globo e está em crescimento acelerado; actualmente será muito mais significativa.
 
Concentra-se praticamente em sete grupos económicos, encabeçados por 2 transnacionais de origem francesa – Suez/Lyonaise des Eaux e Vivendi (Compagnie Generale des Eaux).
 
Estas transnacionais actuam muito mais em corporação ou oligopólio que em concorrência.
 
Constituem-se em grupos de pressão fortíssimos junto dos órgãos de poder supranacionais, sobretudo os financeiros – Banco Mundial, FMI, GATS, ALCA, UE, MERCOSUL, etc.
 
O seu poder tem vindo a crescer extraordinariamente na última década e dominam, de facto, a política mundial da água.
 
Por exemplo, junto à UE, a Vivendi e a Suez fazem parte do “Fórum Europeu dos Serviços” (ESF), acreditado como ONG e consultado nos processos de decisão (além da actuação como “lobby”):
 
Le Fórum Européen des Services était acréditée comme organization-non-gouvernementale (ONG) à la conférence interministérielle de Seattle en décembre 1999. Le Forum Européen des Services est engagé à promouvoir de façon active les intérêts des services européens et la libéralisation des marchés des services dans le monde en rapport avec les négociations de l’AGCS 2000. (Conférence Internationale ESF, Hôtel Shératon, Aéroport de Bruxelles, 27 novembre 2000).
 
Fazem também parte do “Conselho Mundial da Água” (World Water Council, WWC) que organiza de dois em dois anos o “Fórum Mundial da Água” (World Water Forum) que “dita” a política mundial da água (recentemente um lugar de vice-presidente deste Conselho era ocupado pela Suez/Lyonaise).
 
Inserem-se ainda em vários outros grupos de pressão.
 
Através destes, a título de “participação pública” (ou “participação dos interessados”, ou “da sociedade civil”) têm assento em órgãos decisores e reuniões de decisão das diversas instâncias de poder “extra-Estados”.
 
A distorção de processos eufemisticamente designados como “participação pública” tem vindo a ser uma das vias importantes na institucionalização da intervenção destes grupos de pressão na definição de políticas da água, com uma influência de facto nas decisões superior à dos representantes eleitos. Na UE, esta intervenção será superior à do Parlamento. Em instituições em que a representação democrática é diminuta ou ausente, como o FMI ou a OMC, o poder das transnacionais da água por esta via é enorme.
 
É desenvolvida em simultâneo uma outra linha de influência, através da promoção, financiamento e controlo de instituições “científicas” que produzem e divulgam grande parte dos dados e indicadores mundiais e regionais sobre a água, da organização de eventos de difusão da sua “doutrina” e duma agressiva actuação de “relações públicas” e “sensibilização”.
 
O fabuloso “negócio” em jogo e os enormes montantes envolvidos acrescentam às possibilidades de influência um tenebroso potencial de alta corrupção.
 
As transnacionais têm conseguido impor políticas que lhes favoreçam a apropriação da água e dos serviços “com garantia de rentabilidade”.
 
Com três vectores principais:
 
- assumir a água como “mercadoria” – “comodity” – para lhe serem aplicáveis as regras de comércio liberal internacional já impostas para outras mercadorias.
 
- forçar a privatização nos países.
 
- garantir a rentabilidade do negócio através das cláusulas de “recuperação de custos”, que de facto significam o compromisso dos Estados sobre a rentabilidade do negócio, isto é, o Estado assume os riscos e indemniza o empresário se este não conseguir obter os lucros esperados.
 
Todos estes vectores são presentes na Directiva Quadro da Água da União Europeia, embora disfarçados, dada a oposição do Parlamento.
 
Na “regulamentação” para aplicação – sem intervenção do PE – os interesses das transnacionais estão a afirmar-se mais fortemente.
 
A Comissão Europeia tem também pressionado de várias formas países externos à União para a privatização dos serviços de água.
 
Nas políticas do Banco Mundial, FMI, GATS, etc, o interesse das transnacionais sobrepõem-se absolutamente ao dos Povos. As orientações são expressas desses interesses.
 
Estas políticas são impostas aos países que têm que negociar a dívida.
 
A privatização dos serviços públicos, designadamente dos serviços de água, e a “recuperação de custos” são impostas como condição de negociação da dívida e de acesso a fundos de combate à pobreza.
 
Compilei uma lista de exemplos documentados de aplicação dessas políticas em 16 países de muitos baixos rendimentos: Angola, Benin, Burkina Fasso, Chade, Guiné-Bissau, Honduras, Malawi, Mali, Nicarágua, Níger, Panamá, Ruanda, São Tomé e Príncipe, Senegal, Tanzânia e Yemen. Há documentação relativa aos processos de pressão sobre estes países.
 
Este processo torna-se particularmente dramático nos países em que uma enorme maioria da população aufere rendimentos muito baixos.
 
O pagamento da água tem um efeito inverso de redistribuição, porque representa uma percentagem do rendimento tanto mais elevada quanto o rendimento é baixo. Uma subida no preço da água que represente 1% de um rendimento alto, significa 20% num rendimento vinte vezes inferior. O preço da água e os seus aumentos traduz-se assim num incremento das assimetrias de rendimento e agrava a pobreza.
 
Em muitos destes países as doenças hídricas – cólera e bilharzioze – são endémicas. O rendimento de uma grande parte da população não permite “comprar” a água pelo preço que dá lucros rápidos às transnacionais. As pessoas são vítimas de um negócio em que as transnacionais embolsam os fundos de “solidariedade” e os países empenham os recursos e aumentam a dívida.
 
A privatização da água no Gana resultou (pela cláusula de recuperação de custos) no corte da água potável aos cidadãos de menores rendimentos e num surto de cólera. A tentativa de re-nacionalização dos serviços está em curso, mas é quase inviabilizada pelas condições de privatização, e conduz ao agravamento da dívida do país – depois de terem sido consumidos pela transnacional (Suez/Lyonaise) os fundos de “ajuda”.
 
A privatização em Cochabamba – Bolívia – com um aumento de 200% nas facturas de água deu origem a exclusão e a manifestações populares reprimidas com violência. Um morto, dois cegos e muitos feridos. Os serviços foram re-nacionalizados, mas persiste um processo de pedido de indemnizações pesadíssimas pelo ex-concessionário.
 
Na África do Sul está em curso um processo paralelo: privatização, exclusão do abastecimento e revoltas.
 
Nos países mais ricos os resultados são menos dramáticos porque os rendimentos da “maioria” da população “aguentam” a subida do custo de água. A maioria das facturas são pagas, são “menos pessoas” excluídas.
 
Mas nos países mais ricos a privatização é “uma opção” dos Governos, o FMI não pode impô-la da mesma forma.
 
Na Holanda e na Islândia é totalmente vedada pela Constituição. Na UE só França, Inglaterra e Espanha “escolheram” deliberadamente a privatização, e outros países têm algumas experiências, sem implantação percentual muito significativa. Com encargos fortíssimos para o Estado no controlo dos contratos.
 
Em Portugal a gestão pública dos serviços de água e o seu objectivo de interesse público estavam firmemente garantidos na legislação. Mas nas décadas de 80 e de 90 as maiorias parlamentares fizeram sucessivas alterações à Constituição e à Lei de Delimitação dos Sectores até serem removidos todos os obstáculos à privatização da água. Este processo foi tão “eficiente” que Portugal foi classificado pela OCDE em 1998 como “o país mais privatizador da OCDE”.
 
A privatização está em curso acelerado, e “voluntariamente” Portugal conseguirá a curto prazo pôr-se a par de países do terceiro mundo, se ele não for travado.
 
A realidade da privatização dos serviços de abastecimento de água está extensamente documentada:
 
  • Uma concessão transfere sempre responsabilidade pública para o concessionário:
- responsabilidade na manutenção e substituição de infra-estruturas;
- influência na fixação dos preços;
- influência no regime tarifário;
- influência no controlo da qualidade da água.
 
  • A “gestão” é geralmente objecto da concessão, transformando automaticamente o objectivo. A exploração é gerida para maximizar o lucro e não para maximizar a saúde pública e a qualidade de vida dos cidadãos.
  • A gestão com objectivo de lucro desvia-se para a minimização das despesas de manutenção, melhoria e rentabilização de infra-estruturas e a maximização das facturas de despesa. Mais tarde ou mais cedo as facturas sobem e a qualidade do serviço degrada-se.
  • As zonas “menos rentáveis”, isto é, aquelas que não têm consumos altos e concentrados, são as primeiras a sofrer os efeitos da degradação. A tendência é para favorecer os grandes consumidores industriais e descurar os utilizadores domésticos.
  • As primeira medidas “de economia” e “redução de perdas” consistem na eliminação dos serviços públicos gratuitos, na eficiência de corte por atraso de pagamento e perseguição das ligações clandestinas. Há casos reportados, em zonas mais pobres, de eliminação dos fontanários públicos existentes.
  • Na prática, a apregoada “concessão do serviço” implica geralmente, na redacção dos contratos e na sua componente económica e financeira, um maior ou menor grau de privatização das infra-estruturas.
 
Os problemas reportados em relação a este tipo de concessão referem-se ainda a:
 
  • corrupção e incompetência na elaboração e adjudicação dos contratos;
  • deficiências de fiscalização, controlo e aplicação de sanções;
  • despedimentos e violação dos direitos dos trabalhadores que transitam dos serviços públicos para os privados;
  • falta de transparência e burlas na publicitação de informação sobre a qualidade da água;
  • desvio de linhas de financiamento público para subsídio a empresas privadas a pretexto de “utilidade”.
 
A “eficácia” do privado é uma falsidade. Eficácia é o grau de cumprimento do objectivo. O objectivo do serviço público é aumentar a qualidade de vida das populações. O objectivo do empresário é obter lucro. A eficácia do empresário mede-se pelo lucro obtido, e não pela satisfação dos cidadãos. Tem interesse para os accionistas e não para os munícipes.
 
Se os privados fossem tão eficazes como dizem, não haveria falências. Nem “benefícios fiscais”, nem subsídios – o “mercado” funcionaria com a sua mão perfeita.
 
A privatização é muito dificilmente reversível. Isto é, revelando-se a solução de concessão inadequada, a retoma das funções pelo Estado é extremamente difícil, devido ao desmantelamento da organização, ao muito grande número de trabalhadores envolvidos e às “indemnizações” ao concessionário. Em diversos processos relatados, a reversibilidade é difícil e muito dispendiosa. As alterações ao enquadramento internacional do comércio tendem a torná-la praticamente inviável.
 
A privatização do abastecimento de água representa sempre uma perda tripla de cidadania:
 
1. perda do direito à água potável:
 
A prestação de um “serviço” público é uma função e uma responsabilidade do Estado para com os cidadãos, com o objectivo de bem estar das populações e não um “negócio” que o Estado explora para encaixar lucros.
 
A “concessão” da exploração do serviço a um privado adultera, por definição, este princípio.
 
O empresário está vocacionado para explorar um negócio e não para “prestar serviços”. O próprio sistema de direito que regula o exercício da actividade está orientado nesse sentido.
 
Não é o Estado que “contrata” o empresário e lhe paga pela execução de uma tarefa, como no caso de uma empreitada. Pelo contrário: é o empresário que paga ao Estado pela “concessão”. Neste processo, o Estado alija uma responsabilidade para com os cidadãos, transformando-a na “exploração de um negócio” para um terceiro.
 
O “direito à água potável” deixa de fazer parte da cidadania. Em vez disso, se tivermos dinheiro podemos (eventualmente) comprar água.
 
2. É espoliado o direito de participação na política de abastecimento de água:
 
Votamos nos autarcas, de quatro em quatro anos.
 
Temos direito político de participação na gestão autárquica - através de representantes e directamente, nas assembleias.
 
Se não estivermos satisfeitos com o abastecimento de água podemos “despedir” o executivo municipal, sem qualquer encargo.
 
O executivo eleito precisa da satisfação dos cidadãos para se manter no cargo.
 
Num sistema de privatização a gestão só precisa de satisfazer os accionistas. São só os accionistas (que estão noutro país, bem longe da torneira) que decidem sobre a forma como temos (ou nos é vedado) o acesso à água potável. É indiferente à gestão do sistema a vontade dos cidadãos. Paguem ou não paguem. Porque o clausulado do direito económico internacional assegura-lhes de toda a maneira a renda do capital.
 
As concessões têm prazos de vinte e quarenta anos.
 
3. Somos espoliados do território, da natureza e das infra-estruturas:
 
São entregues a um grupo económico, para que deles use e tire rendimento, o solo, a água e as infra-estruturas públicas. É uma expropriação, não indemnizada, para interesse privado.
 
Um depauperamento dos bens comuns cujo usufruto era inerente à cidadania.
 
A cidadania perde suporte físico e material – fica desmaterializada e sem conteúdo.
 
Nas zonas economicamente mais frágeis, como o interior português e muitas regiões “em vias de desenvolvimento”, a dispersão da população eleva muito os custos per capita do serviço, e as populações dispõem de rendimentos muito baixos, o que implica, para um serviço adequado, um financiamento directo e indirecto.
 
Nessas zonas é também crucial o emprego neste tipo de serviços assegurando um rendimento líquido que é suporte, frequentemente, de agregados familiares muito alargados. A lógica “empresarial” de “mercado de trabalho”, procurando a força de trabalho mais barata e a redução de encargos com pessoal, pode transformar-se num grave factor de agravamento da pobreza.
 
Mas o processo de privatização da água põe em causa ainda mais que tudo isto.
 
Está em causa a ruptura da relação dos Homens com a natureza, uma alienação que afecta a própria integridade do ser humano.
 
A água faz parte do metabolismo humano, é parte da pessoa como ser vivo – a água que constitui o corpo, a água que bebemos, a água incorporada nos alimentos, a água da higiene do corpo e do lar, a água com que cozinhamos. Há uma relação milenar da Humanidade com a água, uma relação de trabalho, conhecimento, necessidade, luta, transformação, repouso e prazer.
 
A quebra da ligação natural e essencial entre os Homens e a água é referida como uma fractura metabólica, qualquer coisa como uma amputação, a espoliação ao ser humano de uma parte do seu próprio organismo.
 
A apropriação capitalista da água usurpa um direito natural a todos os seres humanos, apodera-se, para com ela fazer negócio, de uma parte intrínseca da humanidade.
 
É uma fronteira terrível que está em causa, um processo particularmente perverso e contra-natura.
 
É preciso e urgente defender esta fronteira, travar e reverter este processo.
 
 
 
 
Chaleira Damas (Engenheiro e gestor cooperativo)
 
Muito bom dia a todos e ao Grupo Parlamentar de “Os Verdes” o meu agradecimento.
 
Ao falar a seguir à colega e ao ouvi-la com muita atenção, penso que a minha intervenção se encaixa e se complementa perfeitamente com a sua, uma vez que muitos dos aspectos que aqui foram referidos estão efectivamente a acontecer na prática a quarenta quilómetros de Lisboa, no concelho de Setúbal.
 
Nesta minha intervenção vou-me situar muito concretamente no contrato de concessão concedido pela Câmara Municipal de Setúbal à Águas do Sado, o qual prevê toda uma série de situações que sobre o ponto de vista jurídico aparentemente dão resposta para tudo, mas, logo a seguir à assinatura do contrato, o mesmo começa a ser alterado e a ser subvertido completamente, e, neste momento, existe um contencioso entre a Câmara Municipal e a própria Águas do Sado, e decorreram apenas três ou quatro anos.
 
Um aspecto muito interessante neste contrato é que os investimentos são da exclusiva responsabilidade da autarquia, todas as obras novas, todas a obras de remodelação de rede acima de determinados valores. Só para ficarem com uma referência, se uma conduta de água numa avenida ou numa rua precisar de ser substituída, se essa substituição ultrapassar os cinquenta metros de conduta já é um custo da autarquia; se for uma pequena intervenção é um custo do concessionário.
 
Há um outro aspecto importante relativamente à questão dos investimentos: é que, e enquanto eu fui vereador isso foi usado várias vezes, os trabalhos eram adjudicados à Águas do Sado na base de uma lista de preços unitários, que não foi efectivamente aferida por ninguém, nomeadamente na fase de adjudicação. Portanto, penso que ninguém analisou bem quanto é que custava uma curva gibot, um tubo, uma válvula, etc., mas muitas centenas de milhar de contos foram adjudicados nestas condições.
 
Relativamente aos assuntos laborais e sociais, nesta experiência os trabalhadores foram pura e simplesmente ignorados. Não foram envolvidos no processo, logo não estavam comprometidos com o processo. Hoje se forem à Águas do Sado, é evidente que algumas daquelas pessoas estão efectivamente a receber mais dinheiro. Foi uma técnica usada para dividir, atribuindo valores pecuniários aleatórios, não são sempre os mesmos valores, não são dados sempre aos mesmos. Se um determinado trabalhador não se submete às necessidades da empresa, deixa de ter certos benefícios. Assistiu-se a toda uma desregularização importante ao nível das relações pessoais, e isso criou uma tensão enorme, que ainda existe. Por outro lado, passou a ser exercida uma pressão grande para os trabalhadores mais antigos se encaminharem para a reforma, inclusive foram sugeridas formas ardilosas de o erário público pagar mais cedo as pensões e a Águas do Sado ficar liberta daqueles trabalhadores. Esta pressão psicológica sobre as equipas manteve-se e penso que se mantém ainda neste momento. Também os serviços centrais da Águas do Sado, que estavam na Praça do Brasil onde funcionavam os serviços municipalizados, assim que tomaram a privatização imediatamente mudaram para outras instalações. Esta simples mudança de sítio provocou uma quebra na relação com o local, a relação entre os próprios funcionários, e que poderia tornar mais difícil para os gestores a implementação das suas políticas. Houve também uma quebra em todo o funcionamento interno, os armazéns foram desactivados, os serviços informáticos foram substituídos, ou seja, tudo aquilo que havia foi quebrado e entraram novas formas de gestão, muitas delas ineficazes, por exemplo o sistema informático foi mudado duas vezes e, portanto, há aqui uma experimentação que, de facto, como a colega referiu, não abona muito em favor daquela competência imaculada que nos fazem pensar que existe nos privados. A evolução dos serviços não foi sensível. Se forem a Setúbal, à principal central de abastecimento de água, em frente do hospital, ficam a saber que evolução é que houve naqueles serviços de abastecimento público de água.
 
A cidade já não tinha, e o concelho não tinha, grandes problemas. Tinha situações pontuais, mas a situação manteve-se, continua a faltar água como faltava dantes, quando se abre um buraco no meio da avenida para reparar uma tubagem, chegam lá e muitas vezes não têm as peças. Aquelas situações críticas que existiam nos serviços municipalizados na Câmara Municipal continuam hoje a existir na Águas do Sado. Não têm armazém em Setúbal, têm que vir buscar o tubo ou a junta ou a válvula a Lisboa, ou seja, a qualidade do serviço efectivamente não melhorou.
 
Houve logo uma intervenção imediata ao nível da colocação, e isso é perfeitamente correcto, nos terminais da rede, de elementos de contagem. Eles investiram fortemente nisso, de maneira a haver um controlo efectivamente do consumo da água, porque se não soubermos o que é captamos e o que é que vendemos, não podemos falar em perdas, e há muita coisa que está em perda que se prende, pura e simplesmente, com o contador que falta no terminal da conduta.
 
Um aspecto também bastante importante relaciona-se com os vários interesses que estão envolvidos aqui. A empresa Águas do Sado tem várias empresas accionistas. Essas empresas neste momento por cada m3 facturado têm a sua percentagem garantida “à cabeça”, independentemente de haver resultados ou não haver, ou seja aqui há um interesse imediato de uma parte dos accionistas. Alguns administradores da Águas do Sado tinham interesses nas empresas que já trabalhavam com os serviços municipalizados e tinham lá os seus próprios trabalhadores, forneciam materiais, havia todo um conjunto de interesses bastante promíscuo, que penso que mereceria um tipo de investigação se nós estivéssemos num país a sério. O administrador recebia o seu salário e depois recebia por via da empresa que tinha a sua comissão na tarifa, recebia através da venda dos materiais, recebia através dos trabalhadores que directamente ou por intermédio de outras empresas tinham a trabalhar para a Águas do Sado.
 
O interesse do município, efectivamente, não está salvaguardado neste processo. O valor do contrato aponta para dois milhões de contos aproximadamente, ou seja, é o valor de todos os bens passados para a posse da Águas do Sado. Todos nós sabemos que 2.000.000 de contos não é nada para uma rede de abastecimento público de água. 2.000.000 de contos não é o valor do contrato, aquele contrato tem valores bastante superiores, mas esses valores não aparecem ali expressos e, portanto, é entregue a um concessionário um património muito mais valioso que aquele.
 
Em relação ao facto de os investimentos correrem todos por conta do município, estão a ver o problema que é - neste momento a Câmara de Setúbal está como toda a gente sabe numa situação financeira dificílima, o que é também consequência disso. Os serviços municipalizados da Câmara eram rentáveis, não davam grandes lucros, mas não davam prejuízos e tinham uma gestão que não era eficaz. Eu estive à frente dos serviços apenas dois anos, trabalhei depois nos serviços de águas mais seis e sabia as dificuldades que havia nesta gestão da água. Nós não podemos trabalhar como trabalhamos em muitos municípios, muitos funcionários públicos não podem ser aquilo que são, têm que evoluir, porque se não evoluírem nós estamos a dar todos os trunfos a esta situação da privatização. Os técnicos têm que ser competentes, os trabalhadores têm que efectivamente trabalhar e os políticos que estão à frente das Câmaras têm que exercer o seu papel de políticos, de fiscalizadores, de definidores de estratégias, de maneira a ultrapassar isto. Os engenheiros, esses, têm a grande quota de responsabilidade neste processo e muitos deles não utilizam aquilo que hoje a Ordem dos Engenheiros, por exemplo, está a trazer para cima da mesa que são os valores éticos da profissão.
 
Portanto, são estes aspectos todos que ajudam a que estes sete grupos multinacionais entrem muitas vezes facilmente dentro dos serviços, porque há descontentamento da parte das populações.
 
Vou agora passar aqui ao retroprojector, de maneira a poder ilustrar a minha intervenção.
 
Os consumidores, aqui no caso da Câmara de Setúbal, não viram os seus interesses melhor defendidos pela Águas do Sado, e já temos uma experiência de quatro ou cinco anos. As tarifas subiram, como vamos ver. O piquete acabou. Os cortes passaram a ser feitos por empresas adjudicatárias. Os profissionais que estão a trabalhar nessas empresas não sabem da profissão, fazem mal os trabalhos, deixam as águas a correr, há inundações, há toda uma série de problemas, porque esta coisa de entrar no mercado para o qual não estamos totalmente preparados, pese embora algum dinheiro e influência política, não é suficiente para prestar um bom serviço.
 
A principal razão para a concessão dos serviços públicos de água são questões de natureza financeira, de natureza política, como a oradora anterior referiu perfeitamente, e é isso que se passa aqui neste caso muito concreto. Havia interesses financeiros da parte da Câmara Municipal, porque tinha um buraco financeiro enormíssimo e tinha que o resolver. As empresas interessadas na concessão sabiam dessa situação e isso foi, digamos, o principal argumento que veio para cima da mesa.
 
Como podem ver aqui no acetato, o valor do contrato é de 909.227.000 euros, num total de 1.800.000 contos para o património, que é um valor perfeitamente exíguo. A concessão é escriturada em Novembro de 1997 e é entregue à Câmara Municipal um milhão de contos, portanto cinco milhões de Euros. Isto foi no final do ano de 1997. No final do ano de 1998, a Câmara recebe mais 1.500.000 de contos, ou seja, 7.500.000 de euros. E no final do ano seguinte a Câmara recebe mais, ou seja, em dois anos a Câmara encaixa 3.500.000 de contos. Isto estava no contrato. Nos três anos a seguir a Câmara recebe mais 10.000 contos, ou seja, cerca de 50.000 euros. Depois sobe um pouquinho para 50.000 contos (é melhor falar em contos porque toda a gente se entende mais), ou seja, é um período de seis anos a viver com estes valores. Portanto, a facturação da Águas do Sado é de cerca de 2.500.000 de contos neste momento. Se aquilo tudo tiver custos de produção na ordem dos 30%, estão a ver quanto é que soma. Já referi que os investimentos à conta da empresa são zero. Depois, a partir de 2006, há uma renda mensal anual na ordem dos 800.000 contos, ou 4.000.000 de euros.
 
Portanto, verifica-se aqui que há uma injecção financeira no município que nos podia resolver alguns problemas, que devia ser canalizado para a ETAR e para as novas fontes de abastecimento de água de Setúbal, mas, efectivamente, isso não aconteceu. Os projectos foram lançados, as obras estão mais ou menos feitas, mas o facto é que não estão a funcionar, nem ao nível do abastecimento de água. A conduta principal do viaduto de Palmela, do concelho de Palmela, está construída e, no caso das águas, pouco mais está feito. No que respeita à ETAR, esta está sobretudo a começar a trabalhar.
 
Relativamente à evolução das tarifas, vou procurar só analisar dois escalões - a evolução é mais ou menos parecida. Nas águas dos serviços municipalizados tinham a actualização das tarifas indexada à inflação, portanto as coisas corriam com alguma naturalidade.
 
O valor do primeiro escalão de água, com a adjudicação, baixou o preço, quando começámos a ter a Águas do Sado a gerir, o valor do metro cúbico do primeiro escalão baixou para os vinte e nove cêntimos, portanto houve aqui uma redução de quase 13%.
 
O que é verdade é que nos anos a seguir, em 1999, 2000 e 2001 subiram, ou seja quando estávamos em 2001 já estávamos acima. E estávamos acima porquê? Porque a taxa de inflação andou à volta dos 2%-3%, mas a actualização das tarifas em 1999 foi de 6,9%, em 2000 foi de 5,63%, e em 2001 foi de 6%, gerando-se um contencioso entre a Câmara e a Águas do Sado, e penso que este ano, por falha deles, até entregaram tarde a actualização das tarifas. Portanto, há aqui um processo de tentar negociar efectivamente este contrato. Estão a ver o ritmo de crescimento que isto estava a ter, a curva ascendente parou agora aqui porque não foi actualizada a tarifa. O mesmo se passa com os outros escalões, todos eles têm crescimentos de 7%, 3%, 9%, havendo aqui uma clara intenção de rapidamente encaixar os dinheiros gastos.
 
Em relação ao contrato, este tem uma fórmula que teoricamente resolveria os problemas todos, uma fórmula de cálculo das tarifas que é constituída basicamente por duas áreas: um preço fixo e uma tarifa base. Há uma série de indicadores: o custo da energia, o KW/hora em média tensão no distrito de Setúbal, os índices de valorização da mão de obra no distrito de Setúbal, o índice do preço ao consumidor também no distrito de Setúbal. Esta era a fórmula e teoricamente estava tudo bem - ia-se à estatística, tiravam-se esses indicadores, obtinha-se um factor de valorização que ia incidir sobre o valor inicial do contrato. Isto ia acumulando e nós todos os anos íamos sabendo o valor sem nenhum problema. Mas esta fórmula tem um coeficiente “K”, e o que é isto do coeficiente “K”? É um coeficiente que destabiliza tudo isto e que provoca grandes alterações ao valor da fórmula, mas fórmula essa que nunca foi utilizada – estranhamente há uma fórmula no contrato que nunca foi utilizada e daí isto ter disparado. Começaram-se logo a utilizar argumentos de que os salários dos trabalhadores tinham subido mais na administração pública do que estava previsto, e isso não constava na fórmula, o que constava eram os salários dos trabalhadores do distrito de Setúbal. Mas com estes argumentos e com uma gestão “de espinha mole” da Câmara de Setúbal passou a primeira actualização e, a partir daí, passou a segunda e, depois, houve um Tribunal Arbitral que deu razão à Águas do Sado e condenou a Câmara Municipal de Setúbal a manter estas gigantescas tarifas. Isto é consequência de não se ter utilizado a fórmula.
 
Contudo, a partir do terceiro até ao décimo ano o coeficiente “K” sobe 5%, ou seja este coeficiente vai agravar a tarifa base em 5% em cima dos valores que já obtivemos pelo cálculo dos outros coeficientes. Portanto, é natural que a partir do terceiro ano, caso estivéssemos a aplicar esta fórmula, este valor crescesse ainda mais do que está aqui no gráfico. Mas o que é mais grave é que a partir do décimo primeiro ano e seguintes, até aos vinte cinco anos, o coeficiente “K” sobe 12%, ou seja, para índices de inflação estabilizados provavelmente abaixo dos 4%, nós, a partir do décimo primeiro ano, tínhamos aqui um factor “K” que ia agravar uma parte importante da fórmula em 12%.
 
Esta minha exposição era um pouco para dar conhecimento desta experiência e para dizer que, efectivamente, esta experiência que estamos a viver em Setúbal retira ao município mensalmente 200.000 contos de receitas, porque uma coisa é ter 200.000 contos de receitas nas tesourarias da Câmara, outra coisa é não ter - e a Câmara de Setúbal não tem, logo não pode fazer nenhuma gestão de tesouraria, nenhuma gestão financeira, não pode fazer nada.
 
Por outro lado, as tarifas estão com aquele ritmo de crescimento e agora paradas momentaneamente porque há um contencioso, mas não é assim que vai ficar. Vão continuar a crescer.
 
Também os trabalhadores do município ficaram seriamente prejudicados e estão, muitos deles, já na reforma e quem está a pagar somos todos nós. Eram pessoas que podiam estar mais dois, três, quatro ou cinco anos a trabalhar, alguns deles deram, por exemplo, cinco faltas, não responderam aos processos disciplinares face às pressões que havia, foram condenados e foram reformados compulsivamente. Situações destas só estão a lesar o erário público e não satisfazem o consumidor.
 
Alguns consumidores, se forem perguntar a Setúbal, protestam porque a água subiu, e não tinham contadores, era uma deficiência da gestão, agora já têm. Mas mesmo os que tinham, notaram que os preços da água subiram.
 
Por fim, gostaria de dizer que, se as Câmaras introduzirem componentes de gestão empresarial, e isso é possível até mesmo pelo novo plano oficial de contabilidade para a administração local, é possível ter elementos de gestão muito interessantes que dão para gerir bem as autarquias e penso que este aspecto não pode ser aqui esquecido. Há condições, com técnicos capazes, não precisam de ser grandes craques, precisam é de ser pessoas sérias, eticamente responsáveis, para ser possível resolver isto no âmbito da inter-municipalidade. Não vejo nenhuma saída para este processo se a Câmara de Setúbal gerir as suas águas, a de Palmela gerir as suas, a de Sesimbra gerir as suas, a de Alcácer do Sal gerir as suas. Não vejo nenhum interesse nisso, nenhuma vantagem. Acho que os municípios podem trabalhar em cooperação. Eu aqui fui anunciado como gestor cooperativo e uma das soluções que eu sugiro é que a cooperação possa ser levada entre os municípios e a solução cooperativa possa ser utilizada, como tem sido nalguns países que aqui foram citados, para resolver os problemas de abastecimento público de água, e nessa cooperação podem participar os quadros, podem participar os políticos, podem participar as autarquias e os próprios consumidores. Esta política de retirar ao consumidor toda a sua intervenção nas decisões é extremamente perigosa e eu, pessoalmente, comungo das preocupações da anterior oradora e estou na luta para que este processo de privatizações, quer em Setúbal, quer no país, não tenha sucesso.
 
Muito obrigado.
 
 
 
 
Henrique Carreiras (Presidente dos SMAS de Almada)
 
Bom dia a todos. Permitam-me que, antes de mais, saúde, nas pessoas das Senhoras Deputadas Isabel Castro e Heloísa Apolónia, o Partido Ecologista “Os Verdes” e esta Audição Pública Parlamentar sobre a gestão da água e os perigos da sua privatização, sublinhando a importância e a actualidade da mesma. Aproveito, naturalmente, para cumprimentar e saudar todos os participantes.
 
Eu também aqui vou procurar falar da nossa experiência, dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de Almada.
 
Procurarei, com a minha intervenção, apresentar-vos os SMAS de Almada, a nossa experiência, os nossos resultados, as razões da nossa opção pela gestão pública e as nossas preocupações com a privatização deste sector, que a concretizar-se acarretará, a prazo, nefastas consequências para a vida das populações e para o desenvolvimento do país.
 
Os SMAS de Almada abastecem um concelho com 75 Km2, distribuindo uma população residente de cerca de 160.000 habitantes e uma população flutuante diária, no período estival, de aproximadamente 60.000 pessoas, num total de 98.000 locais de abastecimento.
 
Gerimos 27 captações próprias, no aquífero da Península de Setúbal, que produzem cerca de 18.000.000 m3 de água/ano; 26 reservatórios; 65 Km de rede adutora; 550 Km de rede de distribuição em baixa; 600 Km de colectores domésticos e pluviais; 2 ETAR; e 2 laboratórios (um de água para consumo humano e outro de águas residuais).
 
Para edificar este sistema investimos nos últimos cinco anos mais de 6 milhões de contos (aproximadamente 30 milhões de euros), dos quais 4,7 milhões (aproximadamente 23,5 milhões de euros) em autofinanciamento. Para operar e gerir contamos com o empenho de cerca de 525 trabalhadores, abrangendo as áreas técnicas, operacionais e administrativas.
 
O concelho contava, no início da década de oitenta, já com uma cobertura de serviço de distribuição de água a 100%, para uma média da Região de Lisboa e Vale do Tejo, em 2000, de 98% e nacional, para o mesmo ano, de 89%.
 
Em 2000 atingimos uma cobertura de rede principal de drenagem de 100%, encontrando-se já ligados ao sistema cerca de 96% das edificações servidas por água, para uma média da Região de Lisboa e Vale do Tejo de 91% e nacional de 70%.
 
Dos efluentes recolhidos 33% são tratados desde 1994 e este índice atingirá os 100% no próximo ano com as duas ETAR em construção, para uma média em 2000 da Região de Lisboa e Vale do Tejo de 60% e nacional de 50%.
 
A qualidade da água distribuída cumpre, na íntegra, os critérios definidos na legislação em vigor e a monitorização e controlo são realizados, em grande medida, em laboratório próprio, recorrendo-se para outros parâmetros a laboratórios nacionais acreditados.
 
No atendimento à população dispomos de um balcão central e de onze pontos descentralizados de atendimento, um por freguesia do concelho, através de protocolos segurados pelas respectivas Juntas, onde o cidadão pode usufruir exactamente dos mesmos serviços que no balcão central. O atendimento em horário sem interrupção para almoço é já uma realidade há vários anos e o atendimento vinte e quatro horas na Internet, conta também já com cerca de três anos.
 
A transparência do relacionamento com o cidadão é uma das grandes preocupações da administração, seja ao nível da prestação de contas, divulgação de resultados e da aplicação de recursos, seja no que se refere à relação comercial que se estabelece. Para isso, desenvolvemos a acreditação do Laboratório de contadores, a que o cidadão pode recorrer sempre que considere que o instrumento de medição de consumos apresenta deficiências e acompanhar. O mesmo cidadão pode acompanhar todos os testes executados no âmbito da aferição.
 
Não temos um tarifário barato. Temos um tarifário justo e solidário. Subsidia os consumos básicos das famílias, penaliza os consumos excessivos do recurso e não estrangula a actividade económica, promovendo assim o desenvolvimento.
 
Não nos consideramos um paraíso, mas estamos conscientes de ter atingido um patamar de serviço à população e de protecção ao meio ambiente, ao nível do mais desenvolvido que se faz em Portugal e capaz de ombrear com o que de melhor se faz pela Europa.
 
Construímos esta situação através da gestão pública, somos prova de que é possível, somos testemunhas de que é a população e o desenvolvimento das nossas terras quem fica a ganhar.
 
Este trabalho não tem segredos. Tem apenas uma história de muito empenho e determinação de servir única e exclusivamente os interesses da população, promovendo eficiência e gerando recursos, que ano após ano, sem o ónus de remunerar em capitais, se investe integralmente em captações, em redes, em tratamento e em tecnologias que promovem a eficiência ambiental e produtiva.
 
Uma coisa deve ficar clara: sem investimentos não é possível gerar um serviço à altura dos actuais níveis de exigência dos cidadãos e da sociedade; sem investimentos os sistemas não evoluem, não se tornam eficientes e antes se degradam.
 
Aqueles que agora procuram justificar a privatização dos sistemas pela actual situação de degradação em que se encontram, estão a atestar a sua incapacidade por não terem tido a capacidade de ao longos dos anos gerar os recursos necessários e indispensáveis aos investimentos. Pois se é certo que muitos sistemas de água e saneamento no nosso país necessitam de capitais para crescer e se actualizarem tecnologicamente, é também verdade que a forma mais cara de o fazer é privatizando, criando portanto a obrigação de remunerar capitais privados. Hoje é possível financiamentos no mercado de capitais internacional, nomeadamente através do Banco Europeu de Investimentos com taxas abaixo dos 5%, não existindo investidores que não desejem taxas de remuneração do capital investido acima deste valor.
 
Outra falácia que muitas vezes se repete como vantagem da privatização é a da partilha de riscos. Mas o que se verifica, na prática, é o estabelecimento de contratos leolinos que balizam remunerações mínimas do capital privado e fixam indemnizações compensatórias, sempre que esses valores não sejam atingidos ou por alterações de conjuntura ou por erros de gestão, transformando assim o risco de negócio no risco de ganhar dinheiro.
 
A lista de psedo-vantagens da privatização, cantadas pelos seus arautos, não tem fim, nem no tamanho, nem na inexactidão. Uma outra que gostava de vos referir é da recuperação de perdas, como sinónimo de maior eficiência na gestão ambiental do recurso água. É um facto que, por artes mágicas, têm alguns operadores privados, praticamente sem investir na renovação da rede, diminuído a diferença entre os valores da água captada e vendida pelos seus sistemas, chamando a esta acção diminuição de perdas. Ora, nada mais falso. Todos sabemos que na maior parte dos municípios existem relevantes consumos públicos não cobrados por corresponderem a autoconsumos. Assim, tira-se da cartola uns quantos contadores, aumentando-se a facturação do serviço, agora privado, à custa do município que lhe entregou o negócio. Chama-se a isso diminuição de perdas e “aqui d’el rei” que se aumenta a eficiência ambiental do sistema.
 
Por último, gostaria de alertar cada um de vós para um outro aspecto de grande relevância, que a prazo, se esta política se concretizar, poderá hipotecar os relevantes progressos conseguidos a partir da revolução de Abril, na situação do abastecimento de água e do saneamento em Portugal. É da lógica económica que os capitais privados, independentemente do negócio em que se apliquem, busquem a equação que lhes proporcione maximização do lucro. Assim, considerando a alta sensibilidade que o tarifário terá nas populações e a baixa elasticidade da procura, nomeadamente no que se refere ao consumo básico das famílias, é fácil concluir que o elo mais fraco desta cadeia é o património, nomeadamente a rede e os seus órgãos. Desta forma, se tivermos em conta que as concessões o são por tempo determinado, nada mais simples que adivinhar que os investimentos serão feitos por uma vida útil no horizonte em prol da concessão, e que, no fim desta, a sociedade terá de volta uma infra-estrutura incapaz de corresponder aos desafios do seu tempo e tão ou mais carente de investimentos que no início.
 
Muito mais haveria a dizer sobre as inconveniências económicas e sociais da opção pela privatização da gestão dos serviços de água e saneamento, mas julgo que o que atrás ficou dito é, já por si, elucidativo. Gostaria agora de vos dizer que, em consequência, Almada não vacilará, até porque esse é o seu compromisso com a população. Defenderá e manterá a gestão pública, pese embora o absoluto desprezo a que os vários Governos nos têm votado, bem como aos demais concelhos do Distrito de Setúbal, nomeadamente no que diz respeito às infra-estruturas de tratamento. Um distrito com uma cobertura de redes de drenagem de águas residuais das mais elevadas do país, situação já reconhecida no Inventário Nacional de Saneamento Básico de 1991, e cujas infra-estruturas foram construídas na sua quase totalidade a expensas dos orçamentos municipais, encontra-se hoje numa situação paradigmática, por ausência de apoios devidos, de apresentar níveis de cobertura de tratamento dos mais baixos do país.
 
A construção das ETAR da Mutela e do Portinho da Costa, no Concelho de Almada, são bem o exemplo do que atrás afirmei. Com candidaturas aos fundos comunitários, apresentadas desde Fevereiro de 1997, de tempos a tempos o município é convidado a reformular as candidaturas e depois destas reformulações mais perguntas se seguem. No último dos exaustivos inquéritos chega-se ao cúmulo de questionar o município sobre o preço pago pelo terreno onde está a ser construída a estação do Portinho da Costa pelo seu baixo custo. Esta questão foi colocada há cerca de duas, três semanas por escrito.
 
Torna-se, assim, impossível não tirar as devidas ilações. Por detrás da não aprovação das candidaturas, estará a opção deste município em não aceitar integrar o sistema multimunicipal em formação para a Península de Setúbal.
 
Estes jogos de bastidores não nos demoverão do propósito de servir a população e contribuir para o desenvolvimento da nossa terra. Esta falta de vontade política do Governo central causar-nos-á dificuldades certamente, mas não nos derrubará. Continuaremos no âmbito da gestão pública a gerar e procurar captar os recursos necessários à evolução do nosso sistema.
 
Assim, Almada dará continuidade à sua opção e afirmará sem reservas e com convicção a gestão pública dos serviços de distribuição de água e saneamento. Não por qualquer razão abstracta, mas porque estamos certos que só desta forma se garantirá o indiscutível direito de todos de acesso à água, numa perspectiva de solidariedade social e geracional, promovendo uma exploração ambientalmente sustentável do recurso, impulsionando o desenvolvimento económico, multiplicando oportunidades, gerando igualdade, construindo, em suma, uma sociedade mais humanizada e mais justa.
 
Só mais algumas notas.
 
Nós estamos a gerir uma ETAR em conjunto com o município do Seixal. Almada faz a gestão, mas é acompanhada pelos dois municípios - é um exemplo que também podemos aplicar, como o Chaleira Damas já aqui referiu, em relação à gestão dos sistemas. Mas só para vos dar esta ideia, e como exemplo da nossa defesa acérrima do serviço público, o m3 tratado na ETAR da Quinta da Bomba não chega a atingir os 30$00, e noutras ETAR da mesma dimensão, por um estudo que fizemos há cerca de dois anos, as quais estão a ser exploradas por iniciativa privada, o preço do m3 situava-se próximo dos 60$00.
 
Os trabalhadores que ali estão são trabalhadores todos eles recrutados internamente no município, foi-lhes dada formação e penso que os dados que possuímos da gestão daquele equipamento aconselha-nos a caminhar por aqui. Por isso não vamos, na área do tratamento, aderir ao sistema multimunicipal que neste momento está a ser constituído na península, como já transmitimos.
 
Em relação às águas, entraremos num sistema destes, desde que seja um sistema intermunicipal, se não for intermunicipal também por aí não vamos.
 
Nós falámos aqui no tarifário solidário, ora, os consumos domésticos em Almada até aos 25 m3 são fortemente subsidiados e aqui situam-se mais de 85% dos consumidores do Concelho, que são fortemente subsidiados.
 
É evidente que não vou aqui dizer que no conjunto da água fornecida perdemos dinheiro, porque não perdemos. Até ganhamos dinheiro, mas há esta preocupação – serviços que atendem às dificuldades de ordem económica das pessoas, as pessoas altamente carenciadas, desde que o provem, pagam 50% da água consumida e 50% da quota de serviço; são serviços que têm, neste momento, mais de 1.500 pessoas, que se atrasaram em relação ao pagamento, a pagar a água a prestações. Eu acho que ninguém faria isto, acho que se não fosse um serviço público ninguém faria estas coisas e há casos muito complicados de famílias inteiras que não trabalham.
 
Tratam-se de serviços que em 1991 recebiam 40.000 contos da Câmara para funcionar, para fazer face a despesas correntes, porque os investimentos era a Câmara que pagava, e que hoje têm em média uma capacidade de investimento de 800.000 ou 900.000 contos/ano, penso que têm de continuar a ser geridos desta maneira.
 
É evidente que estes resultados não são resultados dos administradores dos SMAS, são resultados de uma grande equipa, de motivação e de muito diálogo à volta dos nossos projectos. Nós aprovámos ontem as nossas opções do plano para o próximo ano e vamos começar a ter reuniões com os trabalhadores, desde já, envolvidos nos projectos para que cada um saiba o que anda a fazer, porque eu acho que isto é fundamental, dialogar com os trabalhadores, proporcionar-lhes condições para que se motivem, para que se sintam bem e temos conseguido de facto resultados.
 
Não temos tudo bom, temos muitas deficiências, por exemplo posso-lhes dizer que, em relação a outros operadores do concelho noutros serviços como a EDP ou a SETGÁS, os Serviços Municipalizados de Almada são os que têm tempo mais reduzido de atendimento à população. Mas, não há filas à porta dos Serviços Municipalizados de Almada para pagar a água ou para esclarecer outro problema.
 
Investimos muito na formação desses funcionários e na retaguarda, mas eu digo isto, e sinto isto sempre com uma certa mágoa e às vezes revolta, é que parece que tudo o que é público é crime, tudo o que é público é mau e não é verdade! Mas faz-se passar esta mensagem, o que é de facto angustiante, tenta-se fazer crer que os funcionários públicos são maus, os gestores públicos são maus, as autarquias são despesistas, e de facto nós provamos por “A + B” que assim não é e que somos capazes também de viver neste mundo agressivo com resultados. Eu penso poder afirmar no caso dos meus serviços, melhores do que um empresa privada. E não há distribuição de lucros para ninguém. Os 800.000 ou 900.000 é para continuar a investir em redes, é para continuar a investir em ETAR. Temos 3.000.000 de contos pagos das nossas receitas próprias do município em duas grandes estações de tratamento, o nosso concelho no próximo ano fica com o tratamento a 100%, e até hoje não recebemos um tostão. Em 1999 o Sr. Ministro Socrátes quase que me quis bater numa reunião quando eu lhe disse que pensei que ele me ia falar do sistema multimunicipal. Ficou muito zangado comigo e garantiu-me que a ETAR da Mutela ia ter aprovação através dos fundos comunitários - isto foi a 14 de Dezembro de 1999. Estamos a chegar a 14 de Dezembro de 2002 e as ETAR estão quase construídas e não recebemos um tostão. Mas não nos vão estrangular por aí, garanto-vos eu.
 
Muito obrigado.
 
 
 
 
Francisco Brás (Presidente do STAL)
 
Quero em primeiro lugar agradecer o convite que me foi dirigido pelo Partido Ecologista “Os Verdes” e registar a oportunidade desta audição parlamentar conhecidas que são as graves intenções do Governo PSD/PP de privatizar a gestão da água.
 
Tendo os trabalhadores das autarquias especiais responsabilidades no que à gestão da água diz respeito este é um tema que vivemos intensamente. Como ninguém, os trabalhadores e as trabalhadoras sabem que os serviços públicos de água, a sua criação, expansão e desenvolvimento no quadro das autarquias locais, permanece como um referencial de luta e de construção de uma vida com mais qualidade para as populações.
 
Por isso é bom lembrar que foi com o 25 de Abril, com a instituição do poder local democrático, que as populações tiveram pela primeira vez acesso à água em quantidade e qualidade, quantas e quantas vezes com o seu próprio esforço directo em estreita cooperação com os serviços e os trabalhadores municipais.
 
Em 1976 apenas 49,7% da população portuguesa tinha água canalizada atingindo hoje valores na ordem dos 90%. E se dificuldades subsistem no que à cobertura de saneamento concerne, não é menos verdade que também aqui se registou um salto significativo, atingindo hoje uma cobertura de 75%, e de 55% no tratamento.
 
É por isso que o STAL e os trabalhadores das autarquias sempre estiveram na linha da frente contra a privatização da gestão dos serviços públicos como é o caso da água. E têm sido muitas as lutas travadas, como nos casos de Mafra, de Gaia, de Matosinhos, que agora reedita a tentativa, de Setúbal, só para citar alguns. São conhecidos avanços e recuos, normalmente pelo reconhecimento das nossas razões e por mobilização da população e da opinião pública.
 
Sempre temos encarado este combate como indo além do domínio profissional, técnico ou juslaboral. Saber se a água deve ser gerida por uma entidade pública, se por uma empresa privada é uma questão política decisiva. É uma questão de sociedade. Saber como é que a água enquanto recurso escasso e indispensável à vida é assegurado e protegido, como é produzida para consumo humano, como é salvaguardada a justeza da sua redistribuição, o seu pagamento, os benefícios e as condições de trabalho daqueles que estão no sector, é uma questão que diz respeito a todos.
 
E se aqui convocamos questões de princípio sobre as funções públicas é porque não nos podemos debruçar apenas sobre os meios e os fins. Que legitimidade existe na entrega aos privados da gestão de um património colectivo, como é a água. Que legitimidade existe ao permitir que parte do rendimento gerado pelo fornecimento de água não seja reinvestido no sistema e sirva para remunerar accionistas privados pondo em causa a universalização e a qualidade do atendimento.
 
Todos sabemos serem opostos os valores, as práticas e os objectivos do sistema público e do sistema privado. Enquanto nos primeiros o objectivo é fornecer a todos em condições de igualdade um serviço público essencial, respeitando valores sociais e práticas correctas, para o segundo, o objectivo é o lucro, submetendo a esse objectivo valores e práticas da sua intervenção.
 
Todos sabemos também que o potencial atribuído às empresas privadas não é realizável no que à gestão da água diz respeito. O sector detém as características daquilo que se convencionou designar de monopólio natural - ou seja, não há possibilidade de existir concorrência. Além disto, a água escapa à lei da oferta e da procura - ou seja, vigora aqui o princípio da não exclusão, pois a água é um bem fundamental à vida.
 
Não é por acaso que todos os dados disponíveis demonstram claramente que os serviços de água privados não são superiores aos sistemas públicos, assim como todos sabem que a gestão pública, com excepção do Reino Unido, da França e em menor escala de Espanha, é largamente maioritária.
 
E no que ao Reino Unido diz respeito vale a pena deixar aqui algumas notas. A privatização assentou fundamentalmente na criação de monopólios privados regionais. Como primeira consequência verificou-se que estas empresas seguindo uma estratégia de maximização de resultados não possuem qualquer lógica de desenvolvimento regional. O preço da água para uso doméstico aumentou em média e em termos reais 36% e o dos serviços de esgotos 42%. Os lucros das empresas só em 1998 aumentaram 57% por comparação com 1997. A qualidade da água diminuiu brutalmente originando sérios incidentes e as perdas de água na rede cresceram significativamente. Só entre 1990 e 1999 o emprego diminuiu 21,5%, perdendo-se 8.599 postos de trabalho.
 
Também em França os estudos realizados demonstram que os consumidores revelam maior satisfação pela gestão pública directa em detrimento da gestão privada, e que os preços praticados pelas empresas privadas são mais elevados na ordem dos 20 e 30%. Em 1999 esse diferencial médio atingiu os 13%. A corrupção aumentou no sector. Há hoje um caso exemplar. Em 1989, Grenoble privatizou a água para a multinacional Lionaise des Eaux. No ano 2000, e após intensas lutas populares, o serviço foi remunicipalizado depois das denúncias e provas de corrupção. Ficou demonstrado que a empresa corrompeu a autarquia para ganhar o concurso, que facturou água que não era realmente consumida e que a forma de cálculo do preço da água apesar de indexada à inflação ultrapassava sempre esta em 4 e 5 pontos percentuais. O antigo presidente da autarquia e um director da empresa foram condenados.
 
Em Portugal a situação altera-se em 1993, com a criação pelo Governo do PSD, dos sistemas multimunicipais e abertura da possibilidade legal de intervenção dos privados na gestão dos sistemas municipais. Dois anos depois dá-se a primeira concessão/privatização de um sistema municipal. O município de Mafra privatiza o sistema de abastecimento de água e saneamento para a General des Eaux. No primeiro ano, a promessa política de redução das tarifas fez com que a autarquia assumisse o acréscimo imposto pela empresa. Aumentam significativamente o preço das ligações e da tarifa de aluguer de contador e foi ainda utilizado um estratagema para aumentar o preço da água, a qual é fornecida por escalões e custava ao tempo cerca de 130$00 os primeiros 10 m3, a técnica foi simples, dividiram a meio o primeiro escalão e os primeiros 5 m3 mantiveram o preço, os outros 5 passaram para mais de 160$00. Mafra tem hoje um dos preços mais caros do país.
 
Em Ourém a mesma multinacional aumentou no primeiro ano o aluguer de contadores em 200%.
 
Em Trancoso, com a gestão da Luságua - empresa já adquirida pela Águas de Portugal - o preço da água aumentou significativamente, ocorreram sérios problemas de qualidade o que motivou uma troca de argumentos entre o município e a empresa.
 
Em Tábua, aumentos brutais na taxa de ligação.
 
Em Fafe, gestão a cargo da Indáqua – empresa ligada à Severn Trent - registo de aumentos significativos no aluguer de contadores. Cortes e falhas no abastecimento de água.
 
Em Santo Tirso, também com gestão da Indáqua, o contrato prevê que a renda estipulada possa ser anulada se a autarquia decidir baixar o preço da água.
 
Em Santa Maria da Feira, aumentos brutais no saneamento e água, falhas no cumprimento do estipulado contratualmente.
 
Em Setúbal, gestão da Luságua, aumentos significativos no preço da água e saneamento. Em 2000 o tarifário proposto pela empresa foi chumbado, a empresa recorreu para o tribunal arbitral e a Câmara foi obrigada a aumentar o tarifário e a pagar o diferencial.
 
Em 2001, o preço das tarifas de água que a empresa Águas do Douro e Paiva cobra aos municípios que abastece sofreu um acréscimo de 6%. Este aumento foi decidido pelo Concelho de Administração desta empresa pública multimunicipal, cujo capital social é detido maioritariamente pelo Governo através do IPE, e cuja finalidade é captar, tratar e abastecer de água municípios dos distritos do Porto e Aveiro, municípios estes que o Governo insiste, tal como em todos os outros sistemas, em remeter por via legislativa para uma posição de accionista minoritária. Este valor quase duplicou a inflação verificada, tendo sido decidido num ano em que a empresa apresentou um milhão de contos de lucro e no mesmo momento em que a sua Administração decide pagar dezasseis meses de ordenado aos membros da Administração.
 
Mas não são apenas as populações que perdem. Os trabalhadores também são atingidos. São as tentativas e pressões para colocar os trabalhadores à disposição de empresas privadas, caso das concessões municipais, suprimindo ao mesmo tempo as competências e logo a razão de ser dos serviços donde são originários estes trabalhadores com a intenção de lhes mostrar que não terão outra escolha senão a de se incorporarem na nova estrutura jurídica com todos os riscos que isto trará para a sua situação. É o fazer mais com menos, aumentando o volume e ritmos de trabalho; é aproveitar-se a contratação de novos trabalhadores normalmente em situação de precariedade para conseguir um ajustamento para pior das condições de trabalho; é a individualização de contratos de carreiras e de salários; a promoção de auto-responsabilização como forma de assegurar a exploração designadamente de quadros técnicos; a remuneração em função daquilo que demagogicamente chamam de mérito e competências individuais; é, enfim, a implantação e o desenvolvimento de uma cultura comercial entre os trabalhadores.
 
Não raras vezes, a concessão/privatização é apresentada e quantas vezes aceite por muitos autarcas como forma de sanear as finanças e de se verem livres de um problema: os trabalhadores das autarquias, esquecendo as consequências sobre estes e sobre as populações. Outros degradam os serviços para aos olhos da população melhor poderem justificar a sua entrega.
 
Omite o Governo e esquecem os autarcas que depois de venderem os anéis só restam os dedos. Esquecem ainda que ao invés de ficarem libertos para outras “missões mais nobres” como muitas vezes afirmam, são, pelo contrário, confrontados com problemas bem mais graves para resolver. Escondem que em muitos casos acabam por gastar mais dinheiro com a privatização. Escondem que perdendo o saber fazer, ficam dependentes dos interesses da empresa que passa a determinar os critérios de investimento, taxas e preços, e, quantas vezes, a influenciar as próprias políticas.
 
Existindo hoje um número significativo de municípios integrados em empresas multimunicipais é lógico que a sua privatização agrade sobremaneira os interesses privados. No entanto, para além do falhanços das concessões que não avançaram como os seus promotores gostariam, os privados também não estão interessados nos cerca de 90% dos sistemas existentes e que servem, cada um, menos de 5.000 habitantes. Querem sim apropriar-se dos sistemas de grande consumo e muito lucrativos, do controlo das empresas que lhes garanta uma posição dominante sobre os municípios e que geram um volume de negócios na ordem de 1.000.000 de euros por dia.
 
Controlando as empresas multimunicipais, não só poderão vir com novo vigor tentar abocanhar a gestão domiciliar, como conseguem uma significativa economia de escala e a garantia, através das empresas que normalmente detêm para as obras públicas, assegurar um inúmero conjunto de empreitadas pagas, também elas, com dinheiros públicos.
 
É por isso imprescindível travar este caminho com a luta, com o esclarecimento e com a mobilização. Também à intervenção institucional cabe um importante papel garantindo por essa via o controlo e a gestão pública da água, procurando recuperar para o sector público as concessões já efectuadas e suster as que se avizinham.
 
Sabemos que pior que o monopólio público é o monopólio privado e é disto que se trata. Sabemos que a regulação, que alguns defendem, nem sequer funciona, como é o caso do IRAR, e é incapaz de pôr travão à gula privada! Até porque, como a experiência demonstra, se o regulador trava os preços, procura fazer cumprir regras ou impor condições, as empresas desinvestem ou desinteressam-se. Ao apagão seguir-se-á a seca?
 
É por isto que lutamos e defendemos um modelo de gestão pública da água, porque este é o recurso mais precioso para a vida que tem de ser protegido e salvaguardado e porque o acesso à água potável é um direito humano fundamental! Assim como não aceitamos que as empresas públicas actuem como se de privados se tratassem, também não aceitamos que se entregue a gestão deste recurso vital à iniciativa privada.
 
Defendemos um modelo que, consagrando a existência dos vários níveis territoriais - multimunicipal e municipal - e assegurados os meios financeiros, promova uma política simultaneamente coordenada, descentralizada e participada, que garanta a protecção da água, a sua distribuição regular e contínua de forma adequada aos usos, a promoção da igualdade, da coesão social e territorial, a garantia da universalização do atendimento com qualidade sem discriminações de qualquer espécie.
 
Um modelo que assegure a participação das populações e dos trabalhadores desenvolvendo crescentes garantias colectivas, a melhoria dos direitos e regalias, a formação e valorização profissional, a segurança, higiene e saúde, a dignificação da carreira e salários dignos.
 
Gostaria ainda de realçar duas ou três notas muito finais.
 
Em primeiro lugar, é nossa convicção que em nenhuma circunstância pode ser confundida boa gestão ou produtividade com desumanização do trabalho ou hiper-exploração dos trabalhadores.
 
Vários “agentes de opinião” e sobretudo o Governo têm por todos os meios tentado confundir as duas, com o objectivo de afirmar que boa gestão e produtividade é sinónimo de mais trabalho e menos direitos.
 
Tais conceitos já eram velhos no século passado e são o oposto de qualquer ideia de modernização ou de avanço da sociedade, pois em nenhuma situação se pode modernizar regredindo nos direitos, e promovendo políticas anti-sociais.
 
A segunda nota, que me parecia importante realçar, tem que ver com a tentativa por parte dos mesmos interesses (Governo/privados) de situar a questão público/privado, partindo sempre do convencimento de que o segundo é melhor do que o primeiro, sobretudo na “gestão”.
 
Ora isto é um logro, pois o que deve distinguir as duas opções são os objectivos de cada uma, atendendo a que a boa, ou a má gestão existem em qualquer uma das situações, pública ou privada, e por acaso até ouvimos a exposição sobre uma óptima gestão pública – a dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de Almada.
 
A terceira ideia final, tem a ver com os trabalhadores. É usual ouvir aos interessados nas privatizações a afirmação de que com estes é que os trabalhadores ficavam bem, iam ganhar mais, valorizar o mérito, etc.
 
Ora, mais uma vez, usam uma mentira desumana pois a realidade é que, sejam os trabalhadores com vínculo público, na situação de requisitados, sejam os trabalhadores admitidos pelas empresas (em regra em situação de precariedade), o que as referidas empresas procuram é desvalorizar salários, retirar direitos e aumentar a carga horária.
 
A nós parece-nos que é fundamental que estes aspectos tenham um desenvolvimento maior, porque depois esquecem-se de coisas fundamentais. Nós constatámos em França, por exemplo, que havia trabalhadores que, tendo sido requisitados na transição para empresa privada, quinze anos depois não tinham tido qualquer progressão na sua carreira profissional no sistema a que estavam ligados. Eles iam tendo actualizações salariais, só que porque tinham um sistema de evolução profissional que era público, há quinze anos que esse sistema não era mudado, estavam na idade da reforma e a reforma correspondia ao valor de metade do salário que entretanto tinham.
 
É nossa responsabilidade denunciar esta situação, para que também pela via da privatização não seja desvalorizado o trabalho e desumanizada a sua relação.
 
Muito obrigado.