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05/03/2020 |
Debate Despenalização da Morte Medicamente Assistida – DAR-I-032/1ª |
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Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: Cerca de dois anos depois, voltamos hoje a discutir a despenalização da morte medicamente assistida.
É um assunto delicado, sensível, que envolve valores fundamentais enraizados na nossa sociedade, que diz respeito ao bem jurídico que é a vida e que, por isso mesmo, faz recair sobre nós um grau de exigência mais elevado ainda, no que diz respeito à responsabilidade e seriedade com que deve ser abordado e discutido.
Trata-se de uma discussão que não é fácil, sabemos, mas também estamos certos de que se tornará tanto mais difícil quanto menor for a seriedade que envolver a discussão.
Também por isso, na apresentação do projeto de lei do Partido Ecologista «Os Verdes», que agora fazemos, o que se pede a quem nos ouve é, tão-só, que a nossa proposta seja entendida nos exatos termos em que está formulada e não como se contivesse normas, disposições ou medidas que, na verdade, não fazem parte da proposta.
Diz-nos o bom senso que só desta forma é possível fazer uma discussão séria e responsável, numa matéria tão delicada e tão sensível, como é a que hoje está em discussão.
Discutamos o que se propõe e deixemos de fora o que de fora está. É este o apelo que, com todo o sentido de responsabilidade, Os Verdes aqui querem deixar.
Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: Quando, em fevereiro de 2017, discutimos, em Plenário, a petição, promovida pelo Movimento Cívico «Direito a Morrer com Dignidade», através da qual se solicitava a despenalização da morte assistida, Os Verdes fizeram saber, logo, durante esse debate, a sua intenção de apresentar uma iniciativa legislativa propondo à Assembleia da República a definição do regime e das condições em que a morte medicamente assistida não fosse objeto de censura penal.
Entretanto, havíamos já discutido e produzido uma profunda reflexão interna, tendo constituído um grupo de trabalho que se mostrou incansável em ouvir um conjunto de pessoas fundamentalmente das áreas da saúde e do direito.
Foi desta forma que construímos o Projeto de Lei n.º 838/XIII/3.ª, que definia o regime e as condições em que a morte medicamente assistida poderia ser praticada sem perseguição de natureza penal.
Nesse projeto de lei, o Partido Ecologista «Os Verdes» propunha a definição das condições em que se poderia praticar a morte medicamente assistida, assumindo assim, publicamente, uma tomada de posição clara sobre a questão, e contribuindo inequivocamente para a intensificação desse debate e para a procura de resultados. Ou seja, Os Verdes contribuíram para o debate não só no plano teórico, mas também sustentados em propostas concretas.
Ora, tendo o referido projeto de lei sido rejeitado, houve, contudo, o aprofundamento de uma discussão que envolveu a audição de um conjunto significativo de pessoas, que, aliás, contribuíram para a elaboração do nosso projeto de lei. Juntando isso às discussões ocorridas e às audições promovidas nesta Assembleia, não só quando os projetos foram discutidos no Plenário, na anterior Legislatura, mas também durante o processo que envolveu a discussão da petição, tudo nos leva a crer que, sobre a falta de discussão relativamente à morte medicamente assistida, pouco ou nada haverá a dizer.
Na presente Legislatura, o Partido Ecologista «Os Verdes» decidiu proceder à reapresentação do mesmo projeto de lei, produto da reflexão feita, aberta aos mais sérios contributos, com a convicção de que ele constitui uma base de trabalho para que possa haver uma consequência efetiva na garantia da dignidade da pessoa humana.
Na verdade, o nosso edifício jurídico-constitucional assenta, justamente, na dignidade da pessoa humana, conforme decorre do artigo 1.º da nossa Constituição, na dignidade de cada ser humano em concreto e de todos por consequência, o que implica o respeito pela autonomia pessoal, num contexto social.
Colocados perante um caso concreto de uma pessoa que padece, garantida e inequivocamente, de uma doença sem cura, irreversível e fatal, causadora de um sofrimento intolerável, que, sabendo conscientemente que a sua agonia tortuosa é a única expressão de vida que conhecerá até ao fim dos seus dias, que pede que, por compaixão, lhe permitam não viver dessa forma e que a ajudem a antecipar o fim do seu sofrimento, de forma tranquila e indolor, pergunta-se se a garantia de dignidade desta pessoa não passa por aceder ao seu pedido, desde que reiterado e com a certeza de que ele é consciente, genuíno, convicto, livre e informado.
Ora, chegados a este ponto, impõe-se agora perguntar: deverá o Estado determinar que uma pessoa, nestas condições, perde a sua autonomia, a sua dignidade, a sua liberdade de decidir sobre si mesma e sobre a sua própria vida, obrigando-a a viver em sofrimento, contrariada, quando não existe outra solução?!
Os Verdes consideram que não. Ou seja, em casos extremos e com garantias de profunda consciência e capacidade por parte da pessoa em causa, não se trata de o Estado desproteger a pessoa do direito à vida, trata-se, antes, isso sim, de respeitar a vontade do titular do direito à vida. E trata-se, sobretudo, de não lhe impor o dever ou a obrigação de viver e sofrer grave e dolorosamente. É neste sentido e nestes exatos termos que Os Verdes propõem que se despenalize a morte medicamente assistida em situações extremas e em condições muito bem definidas e a pedido expresso do doente.
Mas queremos também deixar claro que esta proposta em nada, em absolutamente nada, contribui para reduzir, aligeirar ou desresponsabilizar o Estado relativamente ao seu dever de garantir o acesso dos doentes aos cuidados paliativos e de assegurar uma boa rede de cuidados continuados, com o objetivo de prevenir e aliviar o sofrimento físico, psicológico, social e espiritual, e melhorar o bem-estar e o apoio aos doentes e às suas famílias, quando associados a doença grave ou incurável, em fase avançada e progressiva. Os Verdes continuarão, como fizeram até agora, a lutar pelo alargamento e pela melhoria da rede de cuidados continuados e paliativos.
Que fique igualmente claro que esta proposta não implica obrigar ninguém a escolher antecipar a sua morte. Ninguém é obrigado, nem sequer incitado, a fazer essa opção. De resto, a garantia de não influência ou pressão de qualquer ordem sobre a pessoa em causa é um pressuposto que o Partido Ecologista «Os Verdes» acautela na proposta que apresenta.
E não só ninguém é obrigado a optar, como também, na perspetiva de Os Verdes, tanto deve ser respeitada a vontade de uma pessoa que, perante uma situação-limite de dor e sofrimento intolerável, causados por doença terminal, não concebe a antecipação da sua morte, como a vontade de outra pessoa que, nessa mesma situação, decide que a mesma acabe, breve e tranquilamente, através dos procedimentos da morte medicamente assistida.
É a vontade da pessoa, portanto, que deve ser respeitada e, para isso, o Estado, a nosso ver, não deve proibir a possibilidade de se fazer essa opção, em situações e processos muito bem definidos. O que se visa, efetivamente, garantir é que o princípio de proibição de atender à liberdade e à vontade da pessoa dê lugar ao respeito pelo princípio da sua dignidade, da sua autonomia e da sua soberania, enquanto pessoa capaz e consciente de determinar e escolher o que quer e o que não quer da sua vida.
Mas, na mesma linha de pensamento, não se obrigam os profissionais de saúde a acompanhar e a auxiliar na antecipação da morte de uma pessoa que padece, em absoluto sofrimento, de doença fatal, no caso de esse ato ferir os seus próprios princípios e convicções, sejam eles de que ordem forem. Por isso, o Partido Ecologista Os Verdes prevê o direito à objeção de consciência por parte dos profissionais de saúde.
Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: A nível médico, e a nível da prestação dos cuidados de saúde, ao mesmo tempo que se exige o reforço e o investimento na capacidade de tratamento e de resposta perante a doença grave, a autodeterminação do doente tem feito o seu caminho, sendo hoje inadmissível a permanência absoluta do paradigma herdado de Hipócrates, que menoriza o doente na sua vontade e na sua dignidade.
Exemplo disso é a previsão do consentimento informado, a definição do regime das diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital, e também aqui se pode enquadrar a rejeição da obstinação terapêutica.
A morte medicamente assistida consiste na possibilidade de o médico facultar, de forma controlada, uma morte digna, em paz, sem sofrimento, a quem a pede, encontrando-se em estado de doença terminal ou com profunda incapacidade, incurável, em agonia intolerável. E, como naturalmente se exige, o pedido do doente não pode ser considerado leviano, irrefletido ou precipitado.
Se é verdade que estamos a falar do bem jurídico que mais proteção jurídica deve ter, que é a vida, também é verdade que, em bom rigor, tão importante bem jurídico não se restringe apenas ao direito à vida, inclui também o direito a decidir como e quando se quer terminá-lo, e, se se decidir abreviá-lo, uma vez que não existe o dever ou a obrigação de viver, também se torna compreensível que se entenda restringir essa possibilidade a situações excecionais e a um processo ponderado, cuidado e respeitador sobretudo do doente, mas também da sua família.
Deve, neste ponto, referir-se que, das audições que a Assembleia da República levou a cabo no âmbito da apreciação e exame da Petição n.º 103/XIII, que pretendia a despenalização da morte medicamente assistida, ficou claro, para Os Verdes, que não existe qualquer impedimento de natureza constitucional à despenalização da morte medicamente assistida.
É contudo, bem sabemos, uma decisão extrema, que não pode ser banalizada, e que, como tal, deve ser rodeada das mais devidas cautelas e garantias, mas que, simultaneamente, não se pode eternizar num inferno burocrático que aumente a ansiedade e o sofrimento do doente.
Deve ser, na perspetiva do Partido Ecologista Os Verdes, um processo clínico, cujo desenvolvimento, não prescindindo de um médico titular do processo que o acompanhe até ao final, deve envolver outras instâncias, garantindo a partilha de responsabilidades e de segurança na aferição da situação e no cumprimento dos critérios legais.
Garante-se, assim, a participação no processo de vários intervenientes, numa lógica de decisão do doente mas acautelando a ponderação de uma equipa de pessoas, com solidez ampla de conhecimentos e de experiência, que não deixarão o doente à sua sorte, antes o respeitarão na sua dignidade.
O Partido Ecologista Os Verdes entende também que, de modo a evitar eventuais ânsias de negócio, a morte medicamente assistida deve ter lugar apenas em hospitais públicos e não em hospitais privados. Se há matérias que devem estar fora e longe do mercado e do negócio, esta é uma delas.
Por outro lado, só os cidadãos com nacionalidade portuguesa ou com residência oficial em Portugal que se encontrem a ser acompanhados e tratados em estabelecimento de saúde do Serviço Nacional de Saúde podem recorrer à morte medicamente assistida.
Reitera-se, assim, um pressuposto fundamental em todo o processo: é essencial e indispensável que o processo se encete única e exclusivamente por pedido voluntário e livre, sério, reiterado, expresso e escrutável do doente.
E acrescenta-se que o pedido deve ser instante, atual ou imediato, e nunca antecipado. A garantia de que é aquela a vontade efetiva, persistente e presente do doente é absolutamente determinante.
Por outro lado, o pedido só pode ser feito por paciente consciente, capaz, informado e maior de idade. Em caso algum pode ser solicitado por um menor ou por um seu representante legal, nem por pessoa incapaz ou a quem tenha sido diagnosticada doença do foro mental.
Por fim, é de dizer também que o pedido pode ser revogado a qualquer momento e sem quaisquer formalismos.
Os Verdes apresentam assim o seu projeto de lei, que pode, digamos, ser dividido em duas partes essenciais.
A primeira pretende proceder às alterações ao Código Penal de forma a remover, em determinadas condições e circunstâncias muito particulares, e a pedido do doente, a perseguição penal à morte medicamente assistida.
A segunda parte estabelece os critérios e define todo o processo clínico que envolve a morte medicamente assistida. Um processo rodeado de cautelas e garantindo o respeito pelas regras estabelecidas e a vontade do doente. Um processo clínico que envolve várias instâncias, com partilha de responsabilidades, que garante a segurança na avaliação e o respeito pela Lei.
É esta a proposta de Os Verdes. Definir as condições e os procedimentos específicos a observar nos casos de morte medicamente assistida e alterar o Código Penal para despenalizar, precisamente, a morte medicamente assistida, a pedido sério, livre, pessoal, reiterado, instante, expresso, consciente e informado de pessoa que esteja em situação de profundo sofrimento decorrente de doença grave, incurável e sem esperança de melhoria clínica, encontrando-se em estado terminal ou com lesão amplamente incapacitante e definitiva.
Para terminar, uma última nota relativamente aos restantes projetos de lei em discussão. Os Verdes não irão votar contra nenhuma dessas iniciativas legislativas e aproveitamos, também, para manifestar a nossa disponibilidade para, a partir das propostas aprovadas, se as houver, procurarmos um texto conjunto que assegure o essencial. E o essencial é estabelecer as condições em que se pode praticar a morte medicamente assistida, mas balizadas pelas mais exigentes cautelas e garantias.
Só em determinadas condições, e em situações muito particulares, perante um pedido livre, reiterado, consciente, genuíno, convicto e informado do doente, e, por fim, obedecendo a um processo clínico que, não prescindindo de um médico titular do processo que o acompanhe até ao final, envolva também outras instâncias — no caso da proposta de Os Verdes, de uma comissão de verificação — a quem competirá avaliar o pedido, aferir do cumprimento dos critérios estabelecidos e garantir a transparência do processo, mas também garantir o respeito pela lei.
Os Verdes consideram que esta Assembleia está em condições de o fazer, sem pressas, de forma ponderada, refletida e com o envolvimento e contributo de todos. Esta Assembleia está em condições de produzir uma lei rigorosa, tolerante, equilibrada e que garanta o essencial.
2ª intervenção
Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: Fomos ouvindo, ao longo do debate, algumas afirmações que, se calhar, precisavam de algum ajuste para, de certa forma, colocar alguns pontos nos ii.
O projeto de lei que Os Verdes apresentam — nesse aspeto creio ser semelhante aos restantes projetos, pois é algo comum a todos — assenta em três elementos centrais.
O primeiro assenta em que a morte medicamente assistida só é possível em determinadas situações, isto é, em casos de doença sem cura, irreversível e fatal, em que haja sofrimento, consciência de que assim será até ao fim da vida e em que a pessoa seja maior de 18 anos. Também é preciso que o pedido seja reiterado, livre, consciente e convicto. E, por fim, que o processo seja rodeado das devidas medidas de cautela e de garantia. Creio que tanto a proposta de Os Verdes como as restantes acautelam o essencial que há a acautelar.
Outra coisa que também é necessário clarificar é que nenhuma das propostas em discussão obriga alguém a optar. Não se obriga ninguém a optar.
Aquilo que consideramos é que essa opção, ou esse direito, deve estar disponível para que as pessoas que queiram fazer uso dela o possam fazer em determinadas condições, muito particulares. Ou seja, acho que a questão que se deve colocar é esta: será que o Estado tem o direito de obrigar alguém a viver com uma doença incurável, com sofrimento e mediante pedido do próprio para morrer? Será que o Estado tem o direito de obrigar essa pessoa a continuar a viver? Nós achamos que não. Achamos que o Estado não só não deve obrigar a pessoa a continuar a viver como também deve ouvi-la e, sobretudo, respeitar a sua vontade.
Bem sabemos que estamos a falar de um bem jurídico que é supremo — estamos a falar da vida. Mas o que não podemos fazer é confundir o lugar do direito à vida no nosso ordenamento jurídico, como direito fundamental que é, com um pretenso dever ou uma obrigação de continuar vivo, e continuar vivo mesmo quando uma pessoa tem a perspetiva, que é sua, pessoal e intransmissível, de apenas ter de esperar mais sofrimento, porventura ainda mais doloroso do que aquele que já sofreu durante alguns anos, e já não reconhece sequer na sua própria vida a dignidade mínima da condição da pessoa e do ser humano.
Sabemos que esta é uma matéria difícil e delicada e que este é um processo difícil, mas também sabemos que é nos processos difíceis que é preciso assumir que há que empreender cautelas para que determinados limites não sejam ultrapassados e para que não se deslize para lá do que se pretende prever. E creio que tanto a nossa proposta como as outras que estão em discussão o asseguram.
Queria deixar outra nota sobre uma associação que alguns Srs. Deputados sugeriram entre a morte medicamente assistida e a qualidade dos serviços paliativos. Os Verdes consideram que uma coisa não tem nada que ver com a outra.
Existe uma Lei de Bases dos Cuidados Paliativos, e se não há maior investimento nesses cuidados, assim como nos cuidados continuados, é porque, ao longo dos tempos, houve quem trocasse esse investimento pelos valores do défice e metesse sempre o défice à frente de tudo. E houve outros que, sem falar de défice, também acabaram por cortar na saúde, nos cuidados paliativos e nos cuidados continuados.
Portanto, significa isto que as propostas que estão em discussão em nada, mas em absolutamente nada, contribuem para reduzir, aligeirar ou até desresponsabilizar o Estado relativamente ao seu dever de garantir o acesso dos doentes aos cuidados paliativos e de assegurar uma boa rede desses cuidados.
Não é a despenalização da morte medicamente assistida, a pedido do doente e em casos extremos, que vai retirar qualquer verba que seja ao investimento nos cuidados paliativos, até porque a morte medicamente assistida não implica a contratação de mais médicos ou enfermeiros nem investimentos em equipamento hospitalar.
Do que se trata é de permitir que uma pessoa, em casos muito bem definidos, decida o que fazer do fim da sua vida. Não é o Estado que deve decidir por ela, é a própria pessoa que deve decidir, desde que, naturalmente, estejam garantidos determinados pressupostos, levando a que seja respeitada a sua vontade capaz, expressa, livre e instante.