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Intervenções na AR (escritas)
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21/11/2019
Debate temático sobre transição digital - DAR-I-009/1ª
Intervenção da Deputada Mariana Silva - Assembleia da República, 21 de novembro de 2019

1ª Intervenção

Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: Um País a olhar para o futuro e para o seu desenvolvimento, com o contributo da inovação, da criatividade e da automação, leva-nos para uma dimensão de ilusão e de esperança sobre as potencialidades de um mundo novo — mais prático, mais eficiente, mais moderno —, sobre as imensas possibilidades para o crescimento económico, sobre a criação de melhores condições para os trabalhadores e sobre o mundo idílico em que os seres humanos têm, finalmente, tempo para viver.

Assim, a riqueza que todos os extraordinários avanços da ciência e da técnica que, até hoje, a capacidade humana foi capaz de engendrar, e todos os que, seguramente, ainda por aí vêm, será repartida por todos e não ficará toda agarrada às mãos, aos bolsos, aos imensos luxos de alguns poucos.
Falo de ilusão e esperança porque uma parte significativa do País tem grande debilidade de acesso à cobertura da rede móvel e da internet. Quantos de nós não se confrontaram já com a insegurança de um prazo para cumprir e não ser possível confirmar um dado ou submeter um formulário porque a internet não chega ao sítio onde estamos nesse momento? Quantos de nós não andámos já a dançar na casa de um familiar ou amigo porque só naquele cantinho é que era possível fazer uma chamada? A atual distribuição de cobertura é incapaz de assegurar de forma equitativa o acesso ao serviço de telecomunicações em todo o território nacional. Há uma clara discriminação geográfica quando o desenvolvimento do País se faz a diferentes velocidades.

Fala-se de modernidade e do acesso de todos ao futuro que todos os dias nos bate à porta. Em Lisboa, investem-se rios de dinheiro e o País orgulha-se da Web Summit, mesmo que o trabalho de centenas de jovens, que aí asseguraram serviços, não tenha sido pago.

Não se investe nos meios, nos serviços públicos, na criação de emprego e este desinvestimento no interior provoca o desinteresse das populações em fixarem-se.

Ironicamente, a desmaterialização dos serviços públicos só complica a vida dos agricultores. Por exemplo, um agricultor com 85 anos, ao coletar-se para vender uma couve ou receber o subsídio para a agricultura familiar, é obrigado a aderir à ViaCTT para receber notificações oficiais. Como é que recebe notificações oficiais se não tem acesso à internet na sua área de habitação e meios e os conhecimentos necessários para o fazer?

Ilusão e esperança, sim, Srs. Deputados. Nesta Assembleia, foi aprovado um diploma, por proposta do Partido Ecologista «Os Verdes», sobre a desmaterialização dos manuais escolares, que prevê que se abandonem, gradualmente, os materiais em papel e se diminua o peso das mochilas dos estudantes. Isso é o concreto da digitalização que, ao mesmo tempo, introduziria melhorias para o ambiente. Questionamos o que feito ou concretizado até hoje para cumprir este diploma.

Ilusão e esperança tão visível nos elevados graus de precariedade de todos os trabalhadores e, particularmente, dos trabalhadores intelectuais e dos quadros técnicos, dos investigadores, daqueles que poderiam dar ao País o suporte do futuro. Não é por acaso que centenas de milhares deles têm de procurar vida melhor no estrangeiro. Que empenhamento tem um trabalhador e que incentivo tem um investigador se não sabe se amanhã vai ter contrato ou mesmo dinheiro para assegurar as suas necessidades básicas?

Para não termos só ilusão e esperança, seria importante perceber se, com esta transição digital, é garantido que os investigadores vão ser respeitados e vão deixar de andar de mão estendida, sem saber quando será o próximo financiamento. Será garantido que os aumentos de produtividade que a automação e robotização trará se traduzirão num importante salto para as 35 horas para todos?

Também importa saber o que fará o Governo para assegurar que todos os trabalhadores tenham acesso a formação obrigatória, prevista no Código do Trabalho e na contratação coletiva.

Para isso, é preciso, em primeiro lugar, começar por atacar a precariedade e não a legalizar, pois as empresas não têm interesse em dar formação a trabalhadores que entram hoje e saem amanhã.

Por último, ficamos à aguardar que o Governo elabore uma calendarização para que todo o território português esteja coberto por rede móvel e internet de modo a que o País possa fazer a transição digital sem que ninguém fique de fora.

2ª Intervenção – encerramento

Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: Neste debate, há duas coisas que ficaram bem claras. A primeira é que anda muita gente a tentar ficar na fotografia da modernidade — menos o Governo que não apareceu — e na selfie da Web Summit. Campeões da modernidade é o que não falta!
A segunda é que, para um número muito significativo de pessoas deste País, os retratos são ainda a preto e branco e que, mesmo que a média não seja má, existem alguns em velocidade máxima e outros que passam os dias à procura de sinal.

Ilusão e esperança é o que vemos nesta prioridade do Governo. É que, convenhamos, Sr.as e Srs. Deputados, a transição digital não é compatível com diferenças tão latentes entre o litoral e o interior, que as políticas do PS, do PSD e do CDS promovem há décadas. Esta visão de modernidade, tão bem escrita no Programa do Governo, não se faz com mais de 800 000 portugueses a sobreviverem com o salário mínimo nacional.

Portugal é um dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) com a maior taxa de adultos que não possuem o ensino secundário. A população portuguesa está cada vez mais envelhecida e, em grande escala, infoexcluída.

Neste quadro, querer a modernidade da noite para o dia torna-se ilusão.

Concordamos todos que a tecnologia pode ser uma mais-valia para a economia do País. Sabemos que as tecnologias nas empresas são capazes até de contribuir para a sustentabilidade, com processos e materiais mais amigos do ambiente e menos poluidores.

A aplicação de novas tecnologias criará novos empregos e, haja vontade, será finalmente possível conciliar a vida familiar com a do trabalho. Será possível, pela mecanização, tornar alguns trabalhos menos dolorosos, diminuindo a incidência das mais diversas doenças profissionais incapacitantes.
Temos todos esperança nos ganhos que a digitalização já trouxe e trará na área da saúde, contribuindo para o aumento da qualidade de vida desde as mais tenras idades até ao seu fim.

As tecnologias de informação e comunicação, para além de facilitarem o trabalho, contribuem para reduzir as emissões poluentes porque se evitam muitas deslocações.

Contudo, se, por um lado, falta a rede em zonas isoladas, onde não se fazem investimentos porque a população é idosa e diminuta, locais onde as empresas privadas não estão interessadas em investir, por outro, essas extraordinárias inovações na saúde estão todas concentradas nos grandes centros, porque os serviços no mundo rural encerraram.

Assim, entramos num círculo do qual é impossível sair. Não existem pessoas, não se investe nos meios, nem nos serviços públicos ou na criação de emprego e esse desinvestimento no interior provoca o desinteresse das populações em se fixarem.

Será que falamos de uma transição digital apenas para alguns? Vejamos um exemplo simples, o do serviço público de rádio e televisão que incumbe ao Estado garantir.

O serviço público de televisão deve cumprir os princípios da universalidade, da coesão nacional, da diversificação, da qualidade e da indivisibilidade da programação e da inovação. Contudo, embora se continue a afirmar que 100% da população tem acesso ao serviço público com a introdução da Televisão Digital Terrestre (TDT), a verdade é que as queixas da população gritam o contrário e muitos só têm acesso via satélite, o que acarreta despesas adicionais para as famílias e vota ao isolamento muitas populações do interior. Fala-se da revolução 4.0 ou do 5G, mas aceder ao serviço do TDT, essa evolução tecnológica com mais de 10 anos, continua a ser um problema.

Mais um exemplo, Sr.as e Srs. Deputados: depois dos incêndios de 2017, muitas foram as famílias e os idosos que ficaram sem telefone fixo e móvel, talvez porque não seja lucrativo estender os fios até às zonas rurais, onde as populações precisam de ligação aos filhos e familiares que vivem longe para não se sentirem tão isolados ou para pedirem ajuda, em caso de doença, sem terem de andar quilómetros a pé. As comunicações de rede fixa da aldeia de Marinha de Vale Carvalho, na Sertã, foram restabelecidas a 31 de agosto de 2019, dois anos após os graves incêndios que fustigaram o centro do País. A esta velocidade, vai ficar gente para trás, vão criar-se mais assimetrias regionais e desequilíbrios.

O mais caricato é que obrigam as populações do mundo rural a fazer candidaturas a apoios apenas por via online. Isto não é moderno, é apenas condenar uma parte do País ao atraso e ao abandono.

Também não é inovador substituir as cadernetas que dão acesso às contas bancárias, em nome da modernização, das caixas diretas ou dos pagamentos nos telemóveis, condenando milhares de idosos, com reformas baixas ou sem capacidade para se adaptarem aos novos processos, a mais exclusão. E não aceitamos que a transição digital seja a justificação para transferir mais responsabilidade, mais isolamento e mais custos para os cidadãos.
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