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04/01/2021
PROJETO DE RESOLUÇÃO N.º 826/XIV/2.ª - Rejeição do Acordo Internacional de Livre Comércio entre a União Europeia e o Mercosul
Ao longo dos últimos anos temos assistido à negociação de acordos de live comércio entre a União Europeia e outros países, que acabam por ser lesivos e que representam processos pouco democráticos e transparentes. Podemos dar o exemplo do CETA (Acordo Global de Economia e Comércio) com o Canadá, do TTIP (Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento) com os Estados Unidos da América e do TISA (Acordo de Comércio de Serviços) com 23 países membros da Organização Mundial de Comércio.

O acordo entre a União Europeia e os países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, sendo que a Venezuela está suspensa) começou a ser negociado em 28 de junho de 1999 e, depois de alguns interregnos, as negociações foram reabertas em 2013. Entretanto, a 28 junho de 2019, foi assinado um acordo que ainda carece de ratificação, mas que, à semelhança de outros, pode trazer o agravamento da crise climática, a redução dos padrões de saúde devido ao aligeirar das medidas sanitárias, a ameaça à produção agrícola, principalmente a dos pequenos produtores e o incentivo das práticas intensivas, entre outras consequências.

Tal como noutros acordos similares, o objetivo apresentado é a possibilidade de práticas de livre comércio, nomeadamente a importação de vários produtos agrícolas dos países do Mercosul para os Estados-Membros da União Europeia, e a exportação de bens do sector automóvel para os países do Mercosul.

No entanto, importa ter em consideração que o Acordo UE-Mercosul é mais um acordo comercial que se enquadra na lógica de liberalização do mercado, beneficiando os interesses das grandes multinacionais e das potências europeias, ao mesmo tempo que é muito prejudicial para a maioria dos cidadãos dos dois lados do Atlântico, para os trabalhadores, para os agricultores, para as pequenas e médias empresas, para o ambiente, para a saúde pública e para a democracia.

Este é um acordo que contraria muitos dos objetivos que a União Europeia e Portugal têm vindo a apresentar. Tanto os países da União Europeia como os do Mercosul subscreveram o Acordo de Paris e a Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável e este acordo de livre comércio faz com que se afastem desses compromissos.

Na verdade, a ratificação do Acordo UE-Mercosul representa um aumento significativo das emissões de gases com efeito de estufa devido ao acréscimo do volume de bens transportados, mas também por via da desflorestação e de alterações no uso dos terrenos.

Soma-se a tudo isto o sofrimento animal, devido ao aumento dos métodos intensivos de criação de gado, por terem custos mais reduzidos e serem, assim, mais competitivos e apetecíveis.

Importa ter presente que um dos países que mais beneficia com este acordo é o Brasil, estando em curso a desflorestação e a destruição da Amazónia. Ninguém ignora que o presidente do Brasil tem levado a cabo a sua destruição, assumindo uma postura de desrespeito relativamente às políticas ambientais e aos povos indígenas e encarando a Amazónia como uma fonte de negócio, em que tudo é transacionável, inclusive a sustentabilidade da região e do planeta. Esta situação pode ser agravada devido à expansão das monoculturas intensivas e da pecuária intensiva e à custa da destruição de ecossistemas naturais, originada pelo aumento da procura de determinados produtos, como a carne bovina, a soja e o etanol.

Portugal não pode, através deste acordo, fechar os olhos ao que se passa na Amazónia em relação aos ataques aos direitos humanos e ao ambiente.

Tal como noutros acordos, os pequenos produtores e as cooperativas locais podem sair prejudicados, pois têm de competir com as grandes empresas.

Coloca-se também um problema relacionado com a utilização de pesticidas, antibióticos e organismos geneticamente modificados (OGM), uma vez que na União Europeia o seu uso é mais restrito.

O Acordo UE-Mercosul reduz os padrões de saúde, pois a harmonização regulatória faz com que o controlo do cumprimento das normas sanitárias e fitossanitárias estabelecidas seja enfraquecido. E isto acontece num contexto em que os atuais controlos já são claramente insuficientes. A Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos, no seu mais recente relatório, declarou que 7,6% das amostras recolhidas excedem o nível máximo de pesticidas permitido na União Europeia.

Apesar de a Comissão Europeia afirmar que o acordo respeita os mais elevados padrões de segurança alimentar e proteção do consumidor, tal não é refletido em cláusulas eficazes para fazer cumprir o princípio da precaução nos campos da saúde, da segurança alimentar e do ambiente.

Em termos laborais, podem ser perdidos milhares de postos de trabalho em países do Mercosul devido ao incremento das exportações europeias, estimando-se que, só na Argentina, possam estar 186 mil empregos em risco. Acresce ainda o facto de os sindicatos de ambas as regiões terem destacado a necessidade de um desenvolvimento equilibrado e apontado a falha na ratificação de várias convenções básicas da Organização Internacional do Trabalho na região do Mercosul.

Como se tudo isto não bastasse, à semelhança de outros acordos, abre-se a porta a mecanismos para dirimir conflitos emergentes da relação Investidores-Estado em tribunais arbitrais, ou seja, à possibilidade de as empresas poderem processar os Estados, caso estes adotem medidas que impeçam ou dificultem a sua margem de lucro, o que representa uma violação do Estado de Direito Democrático.

Não existe qualquer justificação de foro jurídico para a criação de um sistema de justiça a funcionar paralelamente e este acordo é mais um ataque à soberania dos Estados e à capacidade de definir livremente políticas económicas, sociais e ambientais.

Portugal, se ratificar este acordo tal como está, estará a alinhar com um retrocesso das conquistas civilizacionais, podendo ser objeto de chantagens corporativas e alvo de processos exigindo indemnizações por parte das empresas se estas considerarem que não são criadas condições favoráveis ao seu investimento e obtenção de lucros, presentes e futuros. Os exemplos conhecidos de processos instaurados por empresas como a Philip Morris ou a Vattenfall deveriam ser mais do que suficientes para alertar para o que está realmente em causa.

Também os procedimentos que acompanharam as negociações deste acordo deixam muito a desejar, replicando muito do que se passou com acordos anteriores. Tendo em conta os impactos na vida das pessoas, seria expectável que houvesse transparência e participação das entidades interessadas, procurando corrigir erros de outros acordos.

Apesar dos cerca de 20 anos de negociações, o acordo foi assinado sem que o seu texto fosse inteira e atempadamente disponibilizado aos cidadãos, não tendo havido qualquer debate público dentro da sociedade portuguesa e assim se mantém.

Mesmo com todo o secretismo deste processo, há movimentos que exigem a rejeição deste acordo, alertando para os riscos que representa. De facto, somam-se as iniciativas reivindicando a sua suspensão, havendo um apelo contra a ratificação do acordo e uma petição da rede europeia. Até o Parlamento Europeu deixou claro o seu posicionamento relativamente a esta matéria ao aprovar uma emenda ao relatório sobre a aplicação da política comercial comum de 2018, onde afirma que não pode ratificar o acordo no seu estado atual, apresentando reservas sobre a proteção do meio ambiente e da agricultura.

Essa emenda foi aprovada por 345 votos a favor, 295 contra e 56 abstenções e, apesar de não ter um caráter vinculativo, demonstra que a maioria dos deputados europeus resiste à ideia de aprovar o acordo.

Segundo um questionário feito pela empresa YouGov, encomendado pela organização SumOfUs, a maioria dos cidadãos europeus é contra o acordo comercial. Em 18 de junho, mais de 340 organizações da América do Sul e da Europa enviaram uma carta aberta aos líderes da União Europeia solicitando cessar as negociações, devido ao aumento das violações de direitos humanos e danos no meio ambiente no Brasil.

Com efeito, os termos que se conhecem deste acordo com o Mercosul já despoletaram a discordância dos parlamentos da Áustria, França, Holanda, Irlanda, Luxemburgo, e Valónia, alegando os impactos muito negativos em termos ambientais.

Em sentido contrário, o governo português tem-se mostrado muito empenhado em avançar com o acordo, querendo ignorar os reais impactos em termos de saúde, ambiente, segurança alimentar e direitos laborais, precisamente numa altura em que Portugal estará na presidência do Conselho da União Europeia no primeiro semestre de 2021.

Face ao exposto, conclui-se que o Acordo UE-Mercosul é um acordo que vai agravar as ameaças climáticas, estimular atentados aos direitos humanos, contribuir para devastar as florestas tropicais e o património natural sul-americano, ameaçar a produção agrícola na Europa, principalmente a dos pequenos produtores, prejudicar os trabalhadores, reduzir padrões de saúde e acentuar assimetrias e vulnerabilidades, entre outros impactos negativos.

O Partido Ecologista Os Verdes continua a defender que é possível termos acordos mais justos e promotores do desenvolvimento sustentável e que o acordo UE-Mercosul podia e devia ser a oportunidade para concretizar a mudança positiva que precisamos, razão pela qual apresenta este Projeo de Resolução.

Assim, ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, o Grupo Parlamentar Os Verdes apresenta o seguinte Projeto de Resolução.

A Assembleia da República delibera recomendar ao Governo que:

1. Rejeite o Acordo Internacional de Livre Comércio entre a União Europeia e o Mercosul, nos seus moldes atuais, tendo em conta os impactos negativos que representa em termos sociais, económicos e ambientais.

2. Diligencie com vista à negociação de um acordo que seja justo, sustentável e participado e que respeite a ação climática, a proteção da natureza, a biodiversidade e os direitos humanos, assentes nos princípios da justiça social e ambiental.

Palácio de S. Bento, 4 de janeiro de 2021

Os Deputados,

José Luís Ferreira
Mariana Silva

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