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Intervenções na Ar (Escritas)
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13/02/2015
Debate temático, requerido pelo Governo, sobre descentralização
Intervenção do Deputado José Luís Ferreira
Debate temático, requerido pelo Governo, sobre descentralização
- Assembleia da República, 13 de Fevereiro de 2015 –

1ª Intervenção

Sr.ª Presidente, Sr. Ministro, falou da salvaguarda da autonomia do poder local. Aliás, no preâmbulo do decreto-lei sobre descentralização que o Governo, hoje, nos apresenta, o Governo lembra a Constituição da República e lembra o respeito pela autonomia do poder local. Eu lembro a Lei dos Compromissos, lembro os vários Orçamentos do Estado, através dos quais o Governo não só desrespeita a autonomia do poder local, como procede, ainda, a grosseiras ingerências na gestão das autarquias locais, obrigando-as, por exemplo, a despedir trabalhadores ou a exigir a autorização do Governo para contratar pessoal.
Mas também posso lembrar, mais recentemente, as 35 horas semanais, na medida em que o Governo apenas as quer para as câmaras que tenham as contas em ordem.
O Governo impõe ainda que os municípios se comprometam a não aumentar a despesa com pessoal.
Bem pode o Governo falar do respeito pelas autarquias locais, bem pode o Governo falar do respeito pela autonomia do poder local que os portugueses já se vão habituando a esta política franciscana do Governo, do «olha para o que eu digo, mas não olhes para o que eu faço».
Depois, o Governo fala do guião da reforma do Estado, a obra-prima do Vice-Primeiro-Ministro, Paulo Portas. Esse guião mais não é do que a expressão da vontade de ver um Estado reduzido a zero no que diz respeito às suas funções sociais. É quase como dizer «quanto menos Estado, quanto menos funções sociais, melhor», porque mais tempo tem o Governo para cuidar da banca e dos grandes grupos económicos. E as pessoas que se amanhem.
Sr. Ministro, sejamos claros: qualquer processo de delegação de competências do Governo para a administração local tem de envolver, forçosamente, a participação não só dos destinatários das novas responsabilidades, como também dos trabalhadores envolvidos. Estou a falar das autarquias locais, estou a falar das organizações representativas dos trabalhadores.
Se, de facto, o objetivo dessa descentralização fosse a melhoria das prestações de serviço público às populações, certamente que o Governo envolveria nessa discussão todos os intervenientes, nomeadamente as autarquias locais e os profissionais, sejam professores, no caso da educação, sejam os trabalhadores da administração local.
Gostava de saber, Sr. Ministro, se os trabalhadores da administração local foram ouvidos e o que disseram ou, por exemplo, no que diz respeito à educação, se os professores foram ouvidos e o que disseram.
E, por fim, porque sei que o Governo ouviu a Associação Nacional de Municípios Portugueses, ainda que esta Associação tenha sublinhado o pouco tempo que o Governo lhe deu para emitir parecer, sugerindo até que o Governo apenas o fez para cumprir calendário, gostaria que o Sr. Ministro nos dissesse o que pensa a Associação Nacional de Municípios Portugueses sobre esta delegação de competências, se entende ou não estarem reunidas as condições para se avançar com o processo. Isto porque ouvi o Sr. Secretário de Estado e pareceu-me que estamos perante dois pareceres. Vou ler o que diz a Associação Nacional de Municípios, na primeira versão:«(…) termos em que a Associação Nacional de Municípios emite parecer desfavorável.» Na segunda versão, a Associação Nacional de Municípios diz, e passo a citar, «(…) razões pelas quais a Associação Nacional de Municípios entende que ainda não estão reunidas as condições que permitam uma contratualização suportada nos princípios que lhe estão subjacentes».
E agora, Sr. Ministro? E agora, Sr. Secretário de Estado? O que têm a dizer?

2ª Intervenção

Sr. Presidente, Sr. Ministro, as suas respostas às questões que lhe coloquei são, de facto, dignas de registo. Vejamos. A pergunta era esta: os trabalhadores da administração local foram ouvidos? O que disseram? Resposta do Sr. Ministro: os trabalhadores da administração local não vão ser prejudicados. Convenhamos, Sr. Ministro, que a resposta foi ao lado. Se isto fosse um exame, teria certamente chumbado. Aliás, esta sua resposta fez-me lembrar os tempos de faculdade em que, quando tínhamos dúvidas ou não sabíamos bem a matéria, dizíamos simplesmente que a doutrina se dividia.
Aqui, o Sr. Ministro sabe a resposta; não quer é dizê-la. O Sr. Ministro não quer dizer que ouviu toda a gente, mas não ouviu os trabalhadores da administração local.
Depois, perguntei se os professores foram ouvidos e o que disseram. E o Sr. Ministro também não disse. E não disse, não porque não sabia. O Sr. Ministro sabe que ouviu toda a gente, mas que, afinal, também não ouviu os professores.
E sobre a Associação Nacional de Municípios Portugueses, Sr. Ministro, aqui, nem uma palavra. E aqui é que era importante que dissesse alguma coisa. É que o Governo diz que a Associação Nacional de Municípios Portugueses está de acordo. Mas os pareceres da Associação Nacional de Municípios Portugueses, que já li há pouco, vêm desmentir o Governo, vêm dizer que o Governo está a faltar à verdade. Portanto, era bom que o Sr. Ministro dissesse alguma coisa sobre isso.
Depois, o Sr. Secretário de Estado diz que ouviu, ouviu e ouviu os agrupamentos.
Sr. Secretário de Estado, a propósito de ter ouvido os agrupamentos, sabe o que é que os responsáveis das organizações de diretores escolares disseram? Disseram que foram chamados a Lisboa, não para falar, mas para ouvir. Ou seja, o Governo não ouviu, o Governo debitou. É por isso que o Governo está praticamente isolado na defesa desta descentralização.

3ª Intervenção

Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Sr.as e Srs. Deputados: Como ficou claro no debate que acabámos de fazer, o Governo pretende avançar com este processo sem ouvir todos os destinatários das novas responsabilidades. E aqueles que ouviu não são favoráveis a que o processo avance.
Aliás, a Associação Nacional de Municípios Portugueses, para além do parecer negativo que produziu sobre este processo, expressa ainda uma grande preocupação pela situação absolutamente singular a que vamos assistir.
Vejamos. Na área da educação, por exemplo, vamos ter o seguinte puzzle ou quebra-cabeças: vamos ter 90 municípios a exercerem algumas competências, sujeitas a determinadas regras; vamos ter 15 municípios que vão exercer competências nas mesmas áreas, mas sujeitas a outras regras; e vamos ter 203 municípios a exercerem as competências previstas genericamente na lei. Uma confusão de resultados mais que duvidosos.
É também claro que o sentido orientador desta dita descentralização nada tem a ver com a preocupação de natureza democrática e, muito menos, com a melhoria dos serviços públicos prestados aos cidadãos, porque estes já há muito que deixaram de ter qualquer relevância para este Governo. Este Governo apenas procura desresponsabilizar-se e poupar dinheiro com as funções sociais do Estado.
Dúvidas? Atentemos neste exemplo: entre a primeira e a segunda versão do documento, o Governo deixou cair o inqualificável convite para que as câmaras municipais cortassem professores até ao limite de 5% do número considerado necessário, a troco de uns trocos: 12 500 € por cada docente abatido.
O Governo deixou cair o convite, é verdade, mas não largou o propósito e, agora, na nova versão, o Governo alarga a poupança a todos os recursos educativos e estabelece a partilha do bolo dos abatidos em 50%.
O Governo diz que são incentivos à eficiência. E nós dizemos que isto é uma vergonha.
No essencial, esta segunda versão mantém os aspetos mais nocivos das pretensões do Governo: continuam a ser retirados poderes de decisão das escolas; continuam a ser transferidas competências relativas à gestão do pessoal docente; continuam a estar presentes os prémios financeiros aos municípios como estímulos ao corte no financiamento da educação e continua o desinvestimento na educação pública.
Sr.as e Srs. Deputados, Os Verdes nada têm contra a descentralização, muito pelo contrário. Mas uma descentralização séria tem de ser feita em sintonia com os municípios, e não, como o Governo pretende, num processo onde o Governo, unilateralmente, estabelece previamente as condições e os objetivos e, depois, os municípios aderem ou não aderem: «Queres, queres; não queres, não queres».
Sucede que não estamos a falar de contratos de seguros, não estamos a falar de cláusulas contratuais gerais, onde a liberdade de estipulação das cláusulas não está presente. Estamos a falar de descentralização e, portanto, numa matéria com esta importância, contratos mancos nem sequer deviam ser considerados, quanto mais propostos.
Defendemos a descentralização de competências, sim, mas num processo ponderado, amplamente consensualizado entre as partes envolvidas, que seja territorialmente equilibrado, que se faça acompanhar dos recursos financeiros adequados e, sobretudo, que tenha como objetivo uma melhor resposta às necessidades das pessoas.
Uma descentralização séria terá de estar associada a um processo de implementação das regiões administrativas, que consiga promover a criação de uma estrutura governativa intermédia, devidamente dotada de competências amplas e capaz de harmonizar as políticas e os recursos.
Para terminar, quero dizer que esta proposta que o Governo nos apresenta, em jeito de cláusulas contratuais gerais, de contratos de adesão, deixando o território ao ritmo de várias velocidades, nada tem a ver com descentralização, nada tem a ver com regionalização e nada tem a ver com o interesse das pessoas e com a melhoria dos serviços públicos prestados aos cidadãos.
Esta proposta tem apenas dois propósitos muito claros: o primeiro é o de que o Governo pretende continuar o seu caminho de desresponsabilização relativamente às funções sociais do Estado; o segundo é o de que, convenhamos, era necessário dar utilidade ao guião da reforma do Estado do Vice-Primeiro Ministro Paulo Portas, que deve ter dado, de facto, muito trabalho. Mas não chamem descentralização a este processo.
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