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15/09/2006
Projecto de Lei Nº. 309/X SOBRE A DESPENALIZAÇÃO DA INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GRAVIDEZ
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Nota Justificativa

Passados mais de oito anos depois de ter sido aprovado em Plenário da Assembleia da República um Projecto de Lei visando despenalizar a Interrupção Voluntária da Gravidez, o Ordenamento Jurídico-Penal português continua a manter a repressão penal do aborto insistindo em tratar as mulheres que voluntariamente decidem interromper a sua gravidez como criminosas.
Esta criminalização do aborto colide frontalmente com a liberdade de que mulheres e homens devem dispor, para fazer as suas escolhas no que respeita à sua saúde sexual e reprodutiva, bem como com o direito que, enquanto cidadãos lhes assiste, em exclusivo, de decidir o momento de ter os seus filhos, de forma a garantir uma maternidade e uma paternidade responsável e consciente.
Ao persistir na manutenção de ilicitude da IVG, constituindo a negação do direito à vida privada, este quadro legal assume uma particular forma de repressão dirigida contra as mulheres, uma privação do seu direito de optar e, ainda, uma inadmissível ingerência do Estado numa matéria que, em exclusivo à mulher ou ao casal, compete decidir.
A nossa retrógrada legislação penal em matéria da interrupção voluntária da gravidez, que contrasta vivamente com o quadro legal europeu dominante, despenalizador da interrupção da gravidez, tem conduzido, ao contrário do que se verifica noutros países, à proliferação, em Portugal, do aborto clandestino, praticado sem regras, em condições de total insegurança e de enorme risco para as mulheres que se tornam neste quadro, em especial as de menores recursos, as vítimas mais vulneráveis.

Os julgamentos de mulheres que viram a sua vida e a sua intimidade devassadas na praça pública, sob a acusação de terem feito um aborto, constituídas arguidas em processos crime, representaram um enorme embaraço para o Estado e para a sociedade portuguesa e, simultaneamente, foram o mais claro desmentido em relação a quem, defendendo a continuação da criminalização do aborto em Portugal, afirmavam que jamais veríamos mulheres a serem julgadas por esse facto.

A persistência inaceitável desta situação, que é forçoso encarar pelas consequências dramáticas no plano pessoal e social, que os julgamentos a que assistimos nos últimos tempos vieram cruamente pôr a nu, impõem-nos a responsabilidade de agir, para a modificar.
É por isso fundamental, perante um drama que não pode ser ignorado, reclamar uma intervenção que se impõe ao Estado, a quem, numa sociedade democrática não compete o poder de regular a consciência individual, nem de penetrar na esfera da privacidade, mas sim o dever de estar atento à realidade social e de intervir quando tal se impõe, como é o caso, no sentido de criar condições para a prática segura de aborto para aquelas que, por decisão própria, o pretendam em determinadas condições praticar.
Com efeito, do que se trata e o que se reclama do Estado, numa sociedade livre como a nossa se pretende, não é o poder de julgar, que manifestamente lhe não cabe, sobre o acto em si (a interrupção de uma gravidez) ou o poder de condenar aquela que o pretenda praticar (a mulher), à luz de uma qualquer moralidade oficial ou de interditos filosóficos, religiosos ou outros.
O papel que se reclama do Estado, em sociedades democráticas, livres e respeitadoras dos valores humanistas e, nos mesmos termos aliás que a Recomendação do Parlamento Europeu, de Junho de 2002 Sobre Direitos Em Matéria de Saúde Sexual e Reprodutiva preconiza, é que se abstenha de agir judicialmente contra as mulheres que tenham feito abortos ilegais, a fim de salvaguardar a saúde reprodutiva e os direitos das mulheres. Igualmente que permita a interrupção voluntária da gravidez de forma legal, segura e universalmente acessível.
É pois este o sentido da presente iniciativa política dos Verdes ao pretender pôr termo a uma lei iníqua, socialmente injusta, que ignora a dramática realidade do aborto clandestino e que se tem revelado inútil para o fim pretendido.
Um projecto de lei no sentido da despenalização em nome da liberdade de escolha e dos direitos das mulheres. Que se justifica, ainda, pelos resultados positivos em termos da redução da prática do aborto que favoreceu, nos países que a adoptaram.
Uma medida cuja urgência é óbvia em Portugal, tendo presente a dimensão e gravidade do problema de saúde pública, resultante dos mais de 20.000 abortos, estima-se, realizados anualmente em condições de enorme insegurança e identificados como a segunda causa de morte materna no país. O drama do aborto clandestino é uma realidade que já dura há tempo demais em Portugal!
Uma questão cujo debate se reveste, como a esmagadora maioria dos cidadãos portugueses o reconhece, da maior importância e oportunidade política e que, em nosso entendimento, não faz sentido manter refém da consulta, de carácter não vinculativo, realizada há mais de 8 anos.
Os Verdes continuam a considerar totalmente inaceitável que se pretenda continuar a negligenciar este gravíssimo problema de saúde pública, adiando a resolução de um dos maiores dramas da nossa actual sociedade, e descartando as responsabilidades legislativa, política e ética deste parlamento como se fez na anterior sessão legislativa, com duas tentativas frustradas de marcação de um referendo, que não só não é obrigatório, como acaba por ser apenas o triste pretexto para o contínuo arrastar duma situação extremamente grave para as mulheres portuguesas, por mais um ano e meio desde que os partidos que assumiram o compromisso de despenalizar a IVG obtiveram a maioria parlamentar.

Os Verdes consideram, aliás, em rigor, ser esta uma questão não referendável. Porque se trata de uma questão que deve estar na dependência do critério da consciência individual de cada pessoa, não sendo possível pretender sujeitar e condicionar essa tomada de decisão, já de si tão penosa e dolorosa, à vontade de terceiros alheios a cada uma das situações individualmente consideradas.

Infelizmente, continua a persistir na lei esta situação: a interrupção voluntária da gravidez não constitui matéria do foro íntimo e privado da consciência de cada mulher, como deveria ser, para que esta possa, de forma livre e responsável decidir não só sobre o seu corpo ou sobre a sua saúde reprodutiva mas sobre a sua vida social e familiar e sobre o seu direito a uma maternidade com condições, consciente, livre e desejada. Com efeito, a actual lei penal, relativamente ao aborto, impõe a toda a comunidade e a todas as mulheres uma visão impregnada de valores e concepções que estão longe de serem pacíficas quer entre a comunidade científica quer no seio da nossa própria sociedade.

É altura de ter a coragem política para acabar com esta situação perfeitamente ultrajante para as mulheres portuguesas e perfeitamente escabrosa em termos de saúde pública, de sofrimento e de vergonha para todas as mulheres que são diariamente forçadas a entrar na clandestinidade onde, sem condições, se vêem entregues a uma roleta russa onde jogam a própria vida. É por demais evidente que nenhuma mulher toma uma decisão dessas de ânimo leve, com espírito de leviandade ou de desrespeito pela vida.

Continuamos a afirmar que a Assembleia da República, deve assumir, mais do que nunca, na segunda sessão legislativa desta X Legislatura, o dever e a missão de não virar as costas a esta situação e a estas mulheres e encarar as suas responsabilidades enquanto órgão legislativo por excelência e guardião da democracia, liberdade e dos valores sociais e humanos que enformam a nossa sociedade e estão consagrados na nossa lei fundamental, tomando a dianteira na resolução desta questão alterando a actual lei penal injusta e desfasada da realidade.

A actual composição do Parlamento português, reflectindo a clara mudança de política ansiada e expressa pelos portugueses nas últimas eleições, conferindo uma clara maioria de mandatos aos partidos que, na sua totalidade e sem qualquer excepção, apresentaram e defenderam projectos de lei durante a anterior legislatura com vista a despenalizar a interrupção voluntária da gravidez, atribui-lhe ainda maiores responsabilidades neste domínio, às quais não se pode furtar.
Porque este é um problema que a todos respeita e apela a uma solução legal urgente, adequada à salvaguarda dos direitos da mulher, ao respeito pelos seus direitos sexuais e reprodutivos, à garantia da sua liberdade de opção, que ponha termo a uma lei inútil, a uma criminalização hipócrita, cuja manutenção constitui uma violência e uma humilhação intoleráveis.
Porque a existência de um processo de alteração legislativa iniciado na primeira sessão legislativa, que se quer terminado o mais rapidamente possível, exige a participação de todos os que estão realmente interessados em mudar a face da realidade do aborto clandestino em Portugal.
Justifica-se plenamente a re-apresentação deste projecto de lei do Partido Ecologista “Os Verdes”, nesta segunda sessão legislativa, o qual, em síntese, propõe:
- A exclusão da ilicitude da interrupção voluntária da gravidez quando realizada nas doze primeiras semanas a pedido da mulher.
A proposta justifica-se por se considerar não dever ser penalizada a interrupção da gravidez que a mulher pretenda fazer sempre que está em causa a preservação da sua integridade moral, a dignidade social ou o seu direito a uma maternidade responsável e consciente.
- O alargamento de 16 para 24 semanas do prazo dentro do qual pode ser interrompida a gravidez, nos casos em que da mesma possam resultar motivos seguros para crer que nascituro virá a sofrer de forma incurável de doença grave, aí incluída a possibilidade de infecção pelo vírus de imunodeficiência humana ou malformação congénita;
A proposta radica na existência de vários estudos científicos realizados a nível nacional e internacional, que apontam para o facto de só ser possível determinar com segurança a evolução ou a existência de malformação a partir da 16.ª semana.
Assim, ao contrário do que uma leitura simplista poderia supor, trata-se de uma proposta pró natalista, dado que este alargamento de prazo permite evitar decisões de interrupção baseadas em meros índices de risco que, com o evoluir da gestação, podem vir a não se confirmar.
- O alargamento do prazo de 16 para 24 semanas dentro do qual a interrupção voluntária da gravidez pode ser praticada sem punição a menores de 16 anos ou incapazes por anomalia psíquica quando tenham sido vítimas de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual.
Considera-se que as situações de crimes contra a liberdade sexual praticadas contra menores de 16 anos ou incapazes por anomalia psíquica justificam um alargamento do prazo para a interrupção voluntária da gravidez por se tratarem de situações complexas e de enorme melindre, condicionadoras e inibitórias do comportamento da vitima, o que conduz consequentemente a uma maior morosidade na decisão de interrupção voluntária da gravidez.
- Garante-se o direito de objecção de consciência aos médicos e profissionais de saúde e, simultaneamente, o dever dos serviços de saúde se organizarem de modo a respeitá-lo e assegurar à mulher a interrupção lícita e voluntária, nos prazos e condições legalmente previstos.
- Propõe-se, em articulação com os serviços de saúde competentes, o posterior encaminhamento da mulher em termos de planeamento familiar.
Visa-se, assim, prevenir novas gravidezes não planeadas e assegurar o efectivo acesso a informação em matéria de direitos sexuais e reprodutivos
-. Assegura-se o dever de sigilo dos médicos e demais profissionais de saúde relativamente a todos os actos, factos ou informações de que tenham conhecimento no exercício das suas funções e relativos à prática voluntária e lícita da interrupção da gravidez;

Assim os Deputados do Grupo Parlamentar "Os Verdes", abaixo assinados, apresentam o seguinte Projecto de Lei sobre a Despenalização da Interrupção Voluntária da gravidez:


Artigo 1º.
Alteração ao Código Penal

Os artigos 140º. e 142º. do Código Penal, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei 48/95, de 15/3, e pela Lei nº 90/97, de 30 de Julho, passam a ter a seguinte redacção:

“Artigo 140º.
Aborto

1.(…).
2.(…).
3.(eliminado)

Artigo 142º.
Interrupção da gravidez não punível

1.Não é punível a interrupção da gravidez quando efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, com o consentimento da mulher grávida, nas primeiras 12 semanas de gravidez para preservação da sua integridade moral, dignidade social ou do seu direito à maternidade responsável e consciente.
2.Da mesma forma, não é punível a interrupção da gravidez quando efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, com o consentimento da mulher grávida, quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:
a) [actual alínea a)];
b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e for realizada nas primeiras 16 semanas de gravidez;
c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença, designadamente de HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana), ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, comprovadas ecograficamente ou por outro meio adequado de acordo com as leges artis, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;
d) [actual alínea d)].
e) Nos casos referidos na alínea anterior, sendo a vítima menor de 16 anos ou incapaz por anomalia psíquica, se a interrupção da gravidez for realizada nas primeiras 24 semanas comprovadas nos termos descritos na alínea c).

3 - A verificação das circunstâncias, previstas nas alíneas a) a e) do nº anterior, que tornam não punível a interrupção da gravidez, é certificada através de atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada.
4 – (actual nº3)
5 – (actual nº4)."

Artigo 2º.
Serviços dos estabelecimentos de saúde

1 - Os estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos organizar-se-ão de modo a dispor dos serviços necessários que garantam a prática voluntária e lícita da interrupção da gravidez nos prazos e termos legalmente previstos.
2 - A objecção de consciência dos médicos e demais profissionais de saúde é fundamentada em documento assinado pelo objector aquando da solicitação da interrupção da gravidez, devendo ser comunicada à solicitante ou a quem, no seu lugar, pode prestar o consentimento e ao responsável do respectivo serviço do estabelecimento de saúde.
3 - Os serviços dos estabelecimentos de saúde referidos no nº.1 assegurarão, em qualquer circunstância, a interrupção voluntária e lícita da gravidez.
4 - Deverão, ainda, os estabelecimentos anteriormente referidos, providenciar em articulação com os serviços de saúde competentes, o acompanhamento da mulher em termos de planeamento familiar.

Artigo 3º.
Dever de sigilo

Os médicos, demais profissionais de saúde e restante pessoal dos estabelecimentos de saúde públicos ou oficialmente reconhecidos em que se pratique a interrupção voluntária da gravidez ficam vinculados ao dever de sigilo profissional relativamente a todos os actos, factos ou informações de que tenham conhecimento no exercício das suas funções ou por causa delas, relacionados com aquela prática, para os efeitos do disposto nos artigos 195º e 196º do Código Penal, sem prejuízo das consequências estatutárias e disciplinares da infracção.

Artigo 4º
Entrada em vigor

O presente diploma entra em vigor no dia imediato ao da sua publicação.


Palácio de S. Bento, 15 de Setembro de 2006.

Os Deputados, Heloísa Apolónia e Francisco Madeira Lopes

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