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20/04/2005 |
sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez |
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Intervenção do Deputado Francisco Madeira Lopes sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez
Assembleia da República, 20 de Abril de 2005
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados,
Reeditamos hoje, aqui, na Assembleia da República, passado pouco mais de um ano desde a última vez, a discussão sobre a despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez.
Nessa altura os partidos de direita, com maioria absoluta recusaram terminantemente, sem qualquer surpresa, a alteração da lei penal que criminaliza o aborto e tem obrigado tantas mulheres portuguesas a se sentarem no banco dos réus, sujeitas à suprema humilhação de verem a sua vida pessoal, e no que de mais íntimo esta pode ter, publicamente devassada, e as suas opções, relativamente à sua saúde reprodutiva e ao direito à maternidade livre e consciente, tomadas in extremis e como último recurso, postas em causa e aviltadas.
Temos hoje um parlamento distinto do que então existia. Todos os partidos que defendem abertamente a Despenalização da IVG, e que para tanto, consentâneamente com as suas posições, apresentaram Projectos-Lei visando alterar a actual legislação penal, viram, à excepção do grupo parlamentar de “Os Verdes”, após as últimas eleições de 20 de Fevereiro, aumentar significativamente a sua representatividade e o seu peso em número de deputados neste parlamento, derrotando assim os partidos de direita e encontrando-se neste momento em franca maioria.
Estão assim reunidas, à partida, as condições necessárias para que o órgão constitucionalmente consagrado como órgão legislativo por excelência, assuma as suas responsabilidades e ponha hoje, finalmente e sem mais demoras, porque não se quis ou conseguiu pôr antes nem mais cedo, malgrado para as mulheres portuguesas e para vergonha de todos nós, cobro ao drama do aborto clandestino em Portugal.
Infelizmente, é forçoso reconhecer que tem sido mercê de compromissos político-partidários, designadamente por cedência do chamado “centrão” à direita mais conservadora que na anterior legislatura, como nos últimos 20 anos, não tem sido possível pôr um ponto final no sofrimento, na dor, na morte e nas chagas infligidas às mulheres que se viram forçadas a abortar, clandestinamente, num qualquer vão de escadas, numa garagem ou anexo, num sótão infecto e asfixiante atulhado de outras mulheres, de outras tantas histórias e dramas absolutamente individuais, pessoais e intransmissíveis.
Essas chagas, que marcarão essas mulheres para toda a sua vida, no corpo e na alma, também mancham a nossa honra. De cada vez que uma mulher é julgada num tribunal acusada de ter praticado aborto, é Portugal inteiro que está ser julgado por não ser capaz, por lhe faltar a coragem para:
dizer não ao Aborto sem condições mínimas de higiene e segurança, sem quaisquer regras, em total insegurança e com graves riscos para as mulheres, para
dizer não à mutilação que tantas vezes destrói a hipótese de uma maternidade futura, possível e desejada, para
dizer não à clandestinidade, esta clandestinidade que 31 anos depois do 25 de Abril continua a persistir, com a diferença de que antes de 1974 quem dava o salto pela fronteira fugindo à guerra, à perseguição, à miséria e à injustiça, eram muitas vezes alguns dos que menos recursos económicos tinham, enquanto que hoje só quem tem meios é que tem direitos, só quem pode pagar é que tem o direito de praticar noutro país a IVG com todas as condições de saúde e dignidade humana.
Donde se tem que concluir que não há Igualdade no nosso país: o aborto clandestino, ou os desmanchos, afectam principalmente as mulheres com menos recursos, as mais pobres, aliás, como sempre, as mais frágeis e expostas a esta situação pela sua condição social, económica e cultural, sempre as mais sacrificadas, as mais vulneráveis. Mas não só, o número de gravidezes e abortos praticados na adolescência, fruto podre de preconceitos retrógrados que têm inviabilizado uma efectiva implementação da educação sexual nas escolas, ou uma eficaz e generalizada política de planeamento familiar no nosso sistema nacional de saúde, assume proporções tão preocupantes como revelam os 0,3% em 1997 ou 0,5% em 2003 de abortos realizados por jovens dos 15 aos 19 anos de idade.
Continuamos, contudo, inexplicavelmente, sem ter dados completos, seguros e actualizados sobre a verdadeira dimensão deste problema. Apesar de ter sido aprovada nesta câmara, em 2002, a realização dum estudo sobre a extensão e as causas do aborto clandestino no nosso país, desconhecem-se até hoje os resultados do mesmo, ou sequer se se chegou, de todo, a iniciar.
Mas quando finalmente conseguem romper a barreira, o manto escuro que cobre esta sórdida realidade, e debaixo do qual se esconde o que alguns insistem, numa cegueira voluntária, dita a pior de todas, em não querer ver, os números falam bem alto: em 2002, de acordo com dados oficiais, cerca de 11 mil mulheres foram atendidas nas urgências hospitalares em consequência de um aborto clandestino, cinco das quais perderam a vida por esse facto. Na verdade estima-se que esses valores ascendam a cerca de 20 mil abortos anualmente.
Mais alto, porém, grita o silêncio amordaçado das histórias, dramas e sofrimentos pessoais que nunca serão contados, que nunca serão contabilizados em quaisquer estatísticas sempre imperfeitas na frieza dos números.
Sr. Presidente, Sras. e Srs Deputados,
Não está aqui hoje em causa unicamente um diferendo entre diferentes concepções da vida, crenças ou convicções éticas, morais, filosóficas ou religiosas. Não é aliás em absoluto, isso que está em causa relativamente aos Projectos de Lei que ora discutimos. A grande questão é se vamos permitir a continuidade da actual situação, com uma retrógrada legislação penal que contrasta vivamente com o quadro legal dominante europeu despenalizador, promovendo a proliferação do aborto clandestino, ou se vamos mudar este quadro, tirando o aborto da clandestinidade, permitindo que a IVG seja de facto uma opção de consciência pessoal de cada um, não só dos deputados mas principalmente das mulheres que se vêem confrontadas com o drama pessoal de ter fazer essa escolha.
O que temos de nos perguntar é se é legítimo impor a todas as mulheres as concepções e crenças de apenas de alguns, mormente através do mecanismo mais pesado permitido num estado democrático: a sanção penal da privação da liberdade.
Porque este debate, apesar de ser, por causa das questões extremamente delicadas e sensíveis que levanta, por causa da dramaticidade de que se reveste, também um debate de sentimentos e sensibilidades que como seres humanos que somos não podemos deixar de reflectir no nosso discurso, convém lembrar que este é também um debate de razão, um debate jurídico, político e legislativo.
Com efeito, em causa estão os próprios fundamentos do Sistema e da Dogmática Jurídico-Penal. Nas faculdades de Direito aprendemos tantos de nós que a sanção penal constitui a última ratio da intervenção do Estado.
Citando a Professora Pizarra Beleza, insigne penalista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, “Só na estrita medida em que as penas forem absolutamente indispensáveis para defender valores essenciais será legítimo que o Estado se socorra da sua forma de intervenção mais dramática: o sistema penal. Só nas matérias em que haja boas razões para crer que essa intervenção originará maiores benefícios sociais do que custos, dada a certeza contemporânea dos graves problemas que a própria intervenção penal suscita, o Estado poderá optar pela incriminação de comportamentos, esgotadas outras alternativas de actuação legislativa ou organizacional.”
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados,
Porque este é um problema que a todos respeita e apela a uma solução legal urgente, adequada à salvaguarda dos direitos da mulher, ao respeito pelos seus direitos sexuais e reprodutivos, à garantia da sua liberdade de opção, que ponha termo a uma lei inútil, a uma criminalização hipócrita, cuja manutenção constitui uma violência e uma humilhação intoleráveis, impõe-se por isso operar com urgência a mudança na nossa lei que trará, tudo o indica, não só a resolução do grave problema de saúde pública com que estamos confrontados, mas também a real diminuição do número total de abortos que será igualmente consequência da despenalização.
Porque não aceitamos baixar os braços quando está em causa combater um flagelo social e de saúde pública, quando está em causa assegurar o legítimo e básico direito de que devem dispor mulheres e homens para fazer as suas escolhas no que respeita à sua saúde sexual e reprodutiva, bem como o direito de decidir o momento de ter os seus filhos, de forma a assegurar uma maternidade e uma paternidade livre, responsável, consciente e desejada, e porque não aceitamos desistir de exigir a esta Assembleia da República que assuma as suas responsabilidades políticas e legislativas, defendemos hoje o nosso Projecto de Lei visando a Despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez que esperamos seja votado em consciência, com abertura e sem preconceitos, e que seja aprovado, já hoje e sem mais demoras, o fim de uma lei iníqua, injusta, desfasada da realidade e que já fez demasiadas vítimas no nosso país.