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06/02/2003 |
Sobre privatização da água |
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Declaração Política da Deputada Heloísa Apolónia sobre privatização da água
Assembleia da República, 6 de Fevereiro de 2003
Sr Presidente, Srs Deputados,
Ontem o Sr Ministro das Cidades, do Ordenamento do Território e do Ambiente esteve finalmente na 4ª Comissão Parlamentar, onde se promoveu uma sessão sobre política da água.
Nesta intervenção pretendo, em nome dos Verdes, deixar registadas nesta Câmara algumas das profundas preocupações que temos quanto à política que o Governo está a desenvolver neste sector.
PRIVATIZAR, é a palavra de ordem do Governo. Privatizar a Águas de Portugal, ainda que sem prazo definido, e para o sistema em baixa o objectivo é a concessão a empresas privadas, por 30 ou 40 anos, o mesmo é dizer entregar todo o sector da água ao privado, abrindo o Estado mão do controlo sobre esta área estratégica de desenvolvimento.
As grandes multinacionais do sector vêem em Portugal um mercado a ganhar nos próximos tempos, num quadro onde a maior parte dos países europeus continuam inequivocamente a optar por uma gestão pública da água.
Afinal, como não esfregarão as mãos de satisfação estas multinacionais, quando perspectivam monopolizar o negócio do século XXI. A corrida ao ouro azul ou ao novo petróleo é demasiado aliciante porque, para além de tudo o mais, é evidente que quem dominar o sector da água deterá um poder político e económico muito forte e determinará modelos de desenvolvimento, a seu favor, claro está, doa a quem doer!
E trata-se de um negócio infalível, um negócio que não sofre crises de procura, na medida em que, tratando-se a água de um bem essencial, imprescindível, fundamental à vida, então, independentemente dos ciclos de crise ou de recessão, tem sempre procura – as pessoas dependem da água, podem abdicar de outros bens, mas da água não… e pagam o que for preciso para a obter.
Ora, pegando justamente na questão do pagamento deste serviço, veio o Sr Ministro informar, com grande regozijo, que havia remetido uma carta a todas as Câmaras Municipais do país, com o objectivo de apelar a que aplicassem o princípio do poluidor ou do utilizador-pagador e que fizessem, portanto, o favor de tratar de aumentar o tarifário da água, uma vez que o seu preço se deveria aproximar do seu custo real.
Já reparámos que o Sr Ministro gosta de usar a figura do poluidor-pagador a propósito de tudo e de nada. Mas, insisto, Srs Deputados, que defender o princípio do utilizador pagador para a água e simultaneamente estabelecer a privatização como objectivo nesse sector, não é sério.
O princípio do utilizador-pagador tem teoricamente como objectivo a poupança do recurso água, procurando desincentivar o consumo através da penalização económica daqueles que mais contribuem para os gastos exagerados desse bem. Em relação à água não podemos aceitar a máxima de que quem gasta deve pagar o seu custo real, justamente porque estamos a falar de um bem vital, que todos precisam, independentemente da sua condição económica, mas o princípio do utilizador-pagador remeter-nos-ia eventualmente para a máxima de que quem gasta exageradamente deve pagar mais por isso, para procurar regras de utilização racional da água.
Porém, penso que ninguém terá dúvidas que as empresas privadas têm um objectivo – o lucro, e de seguida a maximização desse lucro. Ora, para a obtenção desses ganhos vão encontrar todos os mecanismos para evitar a poupança de água e vão, antes, incentivar o seu maior consumo. Aliás, basta olhar as experiências de países que adoptaram o modelo privado de gestão, onde necessariamente os preços da água dispararam e onde são, em termos de tarifas, beneficiados os que as multinacionais consideram ser os seus “bons” consumidores, como os industriais, ou seja aqueles que mais água gastam, e não são, de todo, favorecidos aqueles que as mesmas consideram os seus “maus” consumidores, como os domésticos, ou seja aqueles que menos água gastam. É evidente que estamos perante conceitos de “bons” e “maus” consumidores que nada têm que ver com a concepção ecologista de um bom e mau consumidor, porque não é achada numa lógica de poupança do recurso, mas exactamente ao contrário, ou seja, numa lógica de gasto do recurso que origina proveito para a empresa.
Deste raciocínio só me sai uma conclusão – é que o objectivo teórico do princípio do utilizador-pagador não se compatibiliza com uma lógica de gestão privada da água. Ora, optando e insistindo o Governo no aumento das tarifas, mais não está a fazer do que a preparar todo o caminho para a rentabilização do negócio que pretende ver tomado a curto prazo pelas empresas privadas, de modo a torná-lo cada vez mais aliciante para as mesmas, facilitando-lhes a vida, porque já se confrontarão com altas tarifas e colherão já todo o investimento em infraestruturas já realizados pelo Estado no abastecimento e saneamento de água.
Isto parece-nos por demais escandaloso e leva-nos a perguntar afinal de contas a quem anda a servir o Governo de Portugal? Os interesses económicos não podem continuar permanentemente à frente dos interesses do povo português, não podem continuar a servir de motor para retirar direitos às pessoas, desta feita o direito de acesso a um bem fundamental como é a água.
Aliás, a queixa da AEPSA à Comissão Europeia, a qual originou um contencioso com o Estado português, baseado no monopólio público da água, demonstra bem o apetite pelo domínio do sector pelos privados, e aqui da Génèrale dês Eaux em particular, pondo inclusivamente em causa verbas do fundo de coesão na ordem dos 300 milhões de euros. É evidente que neste processo a contradição do Governo português entre o positivo reconhecimento que se trata de uma prestação de um serviço público de primeiríssima necessidade à população, com uma política social associada, em benefício da qualidade de vida das populações, por isso dominado por uma empresa do Estado, e simultaneamente a intenção de proceder a curto prazo à desresponsabilização do Estado através da privatização do sector, prevista taxativamente também no programa de estabilidade e crescimento, gera uma legítima confusão e em nada ajuda a esclarecer as necessidades do país em matéria de água à Comissão Europeia e a demonstrar que o congelamento da referida verba do fundo de coesão constitui um prejuízo inestimável que a União Europeia está a dar ao desenvolvimento de Portugal.
Sr Presidente
Srs Deputados
Considerar a água como uma mercadoria, como um bem a ser gerido numa lógica de mercado, é demasiado perigoso. É perigoso em termos ambientais onde a gestão privada tem critérios incompatíveis com uma lógica ecologista de gestão que necessariamente tem como objectivo a racionalização de uso do recurso, contrário a uma lógica de maximização de lucros. É perigoso em termos sociais porque a garantia social do bem para quem tem menores recursos económicos não é assegurada, porque a lógica é a da maximização das facturas de despesa. É perigoso em termos de saúde pública porque a maximização de lucros faz-se também pela minimização de despesas de manutenção, de melhoria de infra-estruturas, minimização de despesas de monitorização, o que implicará directamente com a qualidade da água servida às populações.
Sr Presidente
Srs Deputados
Tudo isto nos deve fazer reflectir com grande seriedade. Denunciar os interesses que estão em jogo, exigir que o Governo sirva os interesses dos portugueses, reafirmando que a desresponsabilização do Estado de um sector estratégico como a água constituirá um enorme prejuízo para Portugal, é o alerta que “Os Verdes” pretendem hoje, mais uma vez, deixar expresso nesta Casa.