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01/07/2005
Sobre Propostas de Lei de Bases da Água
Intervenção do Deputado Francisco Madeira Lopes Propostas de Lei de Bases da Água
1 de Julho de 2005
 


 
 
 
 
 
 
 
 
Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados,

Falar da água é falar da própria vida no nosso planeta que na água precisamente teve o seu início e deu os primeiros passos. Todos os seres vivos, entre os quais se inclui o homem, precisam de água para viver. 70% do nosso corpo é feito de água. A Água está presente ao longo de toda a nossa vida, desde que nascemos, logo depois de se romperem as águas do ventre da nossa mãe, até ao dia em que morremos. Quotidianamente, em tudo o que comemos, vestimos, usamos e vemos à nossa volta, a água desempenhou um papel fundamental como verdadeiro elemento, bloco construtivo do nosso universo terrestre.

Por isso, dizer que a água é um bem fundamental à vida, e naturalmente à vida humana, não é de forma alguma um lugar comum ou uma frase feita. Ela é um bem indispensável e incontornável à sobrevivência do homem mas também ao seu mais elementar bem-estar e condição do seu desenvolvimento, na busca da satisfação das suas necessidades, que só será verdadeiro desenvolvimento se for sustentável, isto é se esse bem estar não se fizer à custa do bem estar e legítimas aspirações de possibilidades de progresso e felicidade das gerações vindouras.

E a verdade é que no nosso planeta, chamado planeta azul pelas grandes massas de água oceânicas que ocupam a maior parte da superfície terrestre, a água doce disponível para o consumo humano e para os ecossistemas, ao contrário do que se poderia pensar à primeira vista, constitui apenas 0,01% dos recursos hídricos totais existentes!

A seca que presentemente assola o nosso país de norte a sul, com causas que não se podem também elas dissociar dos impactos da acção do homem sobre o meio ambiente com efeitos nas alterações climáticas e no aquecimento global, veio lembrar e tornar claro que a água, apesar de ser um bem renovável, é um bem finito e tremendamente escasso. A água não se produz como tantas outras coisas. Não está sempre ao alcance de uma torneira. Não estará sempre, de certeza, ao nosso alcance se não a soubermos cuidar, estimar, poupar, respeitar no seu ciclo natural.

Por tudo isto, “Os Verdes” têm procurado ser, desde sempre, neste parlamento, como noutras sedes, uma voz incansável no alerta e na defesa do recurso, do bem água, cuja gestão entendemos, pela dimensão tão esmagadora que tem em todos os campos da actividade humana, desde a indústria, à agricultura e florestas, passando pelas pescas, transportes e lazer, dever estar, necessariamente nas mãos de entes públicos, que, com responsabilidade e sujeitos a fiscalização democrática, coloquem a satisfação do interesse público bem como os valores da justiça, universalidade e equidade no acesso a este bem, bem como os princípios da salvaguarda, defesa e protecção do mesmo, acima de quaisquer outros.

Igualmente temo-nos manifestado contra as múltiplas tentativas de mercantilização e privatização da água que, sob diversas formas e com diferentes rostos, um pouco por todo o mundo e também aqui em Portugal, têm avançado paulatinamente e com pezinhos de lã na corrida ao ouro azul que é hoje uma preocupante e gravíssima realidade indesmentível.

Sr. Presidente
Srs. Deputados,

No momento em que realizamos o debate acerca do regime jurídico de base deste bem tão precioso, analisando as iniciativas legislativas que se propõem a introduzir, de uma forma tão profunda, alterações tão complexas no nosso actual ordenamento jurídico, importa desde já recordar alguns factos da história recente da lei da Água no nosso país, designadamente neste órgão legislativo.

Recordar como foi intenção dum anterior Governo do PSD arredar este parlamento do processo legislativo da lei da água quando assumiu de início a intenção de apresentar um pedido de autorização legislativa à qual não se podia furtar por constituir matéria de competência de reserva relativa da Assembleia da República. Lembrar ainda como o mesmo Governo de direita colocou em discussão pública o seu projecto na Internet, em vésperas do Natal de 2003 disponibilizando-se para aceitar contributos até 10 de Janeiro seguinte, sem o fazer acompanhar de qualquer aviso ou publicação, numa óbvia intenção de o fazer passar despercebido e à socapa, reduzindo assim drástica e descaradamente as hipóteses de uma verdadeira participação pública.

Na verdade só graças à denúncia feita pela Associação Água de Portugal e ao empenho neste Parlamento dos Verdes, foi possível inverter o curso desta situação acabando o PSD por recuar na sua intenção inicial.

Infelizmente, o Governo PS não aprendeu com os erros dos seus antecessores. Antes pelo contrário. É que se desta vez o PS nos apresentou uma Proposta de Lei, submetendo ao processo legislativo da AR, como deve ser feito, a Lei da Água, não podemos deixar de notar um aspecto extremamente negativo. Desta vez, nem mesmo pela Internet, ainda que escondida numa qualquer página dum qualquer site, pelo menos que nós tenhamos dado conta, se abriu o processo de consulta e discussão pública do projecto. Isto parece-nos extremamente grave.

É que, Sr. Presidente e Srs. Deputados, estamos a falar de uma reforma de fundo do direito da água português, com raízes culturais profundas que vão beber ao direito romano, e com um impacto muito grande no nosso país e para o qual se impunha contar com uma ampla participação da sociedade civil aos mais diversos níveis desde agricultores, ecologistas, técnicos, associações de defesa de consumidores, autarquias e suas estruturas representativas, etc.

A agravar ainda mais esta situação, o Governo só nos disponibiliza as suas Propostas com menos de uma semana de antecedência da sua discussão em plenário, em nada contribuindo para a riqueza e profundidade do debate. É caso para dizer que o Governo não começou nada bem este processo, longe dos cidadãos e sem debate prévio, situação apenas remediada por intervenção parlamentar que permitiu o acordo de baixa de todas as iniciativas à comissão sem votação. Esperamos que depois do dia de hoje, o Governo encete de imediato medidas visando alargar este debate que aqui hoje fazemos dentro destas paredes a toda a sociedade portuguesa, como se impõe. Ainda vai a tempo.

Relativamente às quatro iniciativas legislativas que temos perante nós temos que dizer que uma se distingue claramente das restantes, pela positiva consideramos nós, e essa iniciativa é a do PCP. A proposta do PCP apresenta uma concepção da água como direito fundamental que também nos Verdes sempre afirmámos. Mas mais que isso: o PJL do PCP propõe uma nova cultura da água. A água como suporte de vida, com veículo do desenvolvimento da humanidade na sua plenitude, compreendendo e respeitando a água na sua dimensão ecológica e o seu ciclo natural.

Com efeito, as restantes três propostas, do PS, do PSD e do CDS, para além de apresentarem muito próximas e comungando de uma mesma visão e filosofia, não assumem um carácter de verdadeira Lei de Bases ou Lei Quadro. Na verdade falta-lhe a dimensão de um verdadeiro diploma de base, estruturante que lance os alicerces seguros, claros, justos e adequados de um regime jurídico da água.

Desde logo deveriam estabelecer algo tão básico como o princípio da importância fundamental do bem água e a sua característica de escassez e fragilidade face aos impactos que sofre com as actividades humanas. Mas estas propostas não o fazem.

Na verdade mais parecem um super regulamento que apenas pretende substituir um conjunto de diplomas actualmente em vigor e que, a pretexto de transpor a Directiva 2000/60/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, aproveita para criar todo um conjunto de fragilidades e abrir toda uma panóplia de brechas no sentido de instituir a mercantilização da água e dos restantes bens do domínio hídrico como os leitos, margens, zonas adjacentes, etc.

Na verdade, a intenção, de dissimular entre artigos cuja redacção de pendor fortemente técnico, se mostram por vezes herméticos e quase blindados à compreensão por leigos, não é inocente e o pendor de gestão economicista e mercantilista, no intuito de desresponsabilizar o poder público por concessão a privados naquele que já foi chamado o negócio do Século por ser a água considerada pelos grandes consórcios privados e transnacionais capitalistas do seu ponto de vista exclusivamente com mira no lucro certo de um bem sem elasticidade na procura, pois esta nunca baixa muito, mesmo que aumentem os preços porque simplesmente não é um bem que se possa dispensar, está bem presente nas propostas do PS e da direita.

Só a título de exemplo veja-se o que prevê o artigo 72º, nº3, alínea b) da PPL Quadro do Governo que permite que seja o privado concessionário de uma grande infra-estrutura hidráulica como por exemplo a Albufeira de Castelo do Bode, a licenciar actividades e a fiscalizar o domínio público hídrico em relação a terceiros. Isto é muito concretamente e sem sombra de dúvida a privatização da água, das margens. Dos bens do domínio público hídrico.

É significativo que a Directiva Quadro que, teoricamente, pretendem transpor, coloque, ao longo de todo o texto a tónica na qualidade e protecção da água, objectivo que na PPL do Governo é absolutamente posto à margem, não se revogando inclusivamente a legislação nacional actualmente vigente sobre essa matéria.

O Governo só soube aproveitar da Directiva o que lhe interessava ou lhe pareceu inócuo no sentido de abrir as portas à alienação da água aos privados, faceta que a própria Directiva, e por isso também a criticamos, infelizmente já contém.

Depois, apesar da proposta de Super-regulamento do Governo tomar opções erradas, nalgumas das quais os técnicos são praticamente unânimes, como quando desvirtuam o princípio da Gestão por Bacia Hidrográfica, espartilhando o domínio hídrico nacional em 5 Administrações de Região Hidrográficas chegando inclusivamente a juntar numa delas 2 bacias internacionais com 4 nacionais ao arrepio da opinião de especialistas e do próprio Conselho Nacional da Água.

Por outro lado criam situações de bondade extremamente duvidosa deixando demasiado para posterior regulamentação, recorrendo com frequência a conceitos indeterminados legando margens de discricionariedade perigosas e injustificáveis.

Sr. Presidente
Srs. Deputados,

Há toda uma filosofia que perpassa as propostas do PS, PSD e CDS que não acautela devidamente a qualidade da água, que não tem em conta a sua escassez, ou o seu acesso justo e equitativo, sendo documentos cuja nota fundamental vai para uma gestão pejada de prioridades economicistas. Isso é óbvio quando na senda dos princípios do poluidor-pagador e do utilizador-pagador, que acham que tudo resolve, consagram o próprio direito a poluir fazendo depender a capacidade de exercer esse direito apenas ao pagamento da respectiva taxa.

Poucas vezes teremos nas nossas mãos o poder e tremenda responsabilidade de tomar decisões sobre um regime jurídico de modo tão profundo e duradoiro afecta toda a nossa vida enquanto indivíduos e membros da comunidade.

Por isso importante que não nos precipitemos o que está em causa hoje é, efectivamente a concepção da água como um direito ou como uma mercadoria, um bem venal, ainda que como diz a Directiva Quadro da União Europeia, não seja uma mercadoria como outra qualquer.

Em nosso entender só pode ser vista como um direito, como um direito natural, como complemento fundamental do próprio direito à vida, pois sem água a vida não é possível, e à dignidade da pessoa humana, valores jurídicos supremos no nosso ordenamento jurídico.

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