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28/02/2003
Sobre Trocas de Seringas em Meio Prisional

Intervenção da deputada Isabel Castro Sobre Projecto de Lei nº 58/XI
Altera a Lei nº 170/99, de 18 de Setembro (Adopta medidas de combate à propagação de doenças infecto-contagiosas em meio prisional)
Assembleia da República, 28 de Fevereiro de 2003

 

 

 

 

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados,

A situação nas prisões portuguesas é alarmante em termos de saúde.

Com uma incidência de doenças infecto-contagiosas extremamente elevada em meio prisional.

Uma situação preocupante, assim a tem classificado o Presidente da República.

Uma situação dramática, nas palavras do actual bastonário da Ordem dos Advogados.

Na nossa opinião, acima de tudo, uma situação que não pode permanecer ignorada. E que impõe, que reclama, que responsabiliza pela adopção com prioridade, aos mais variados níveis, de medidas políticas para a melhorar.

Medidas concretas, designadamente, num dos domínios que há muito nos move e tem suscitado a intervenção e iniciativa política dos Verdes e é, de modo consensual, tido como prioritário: o da defesa da saúde e da prevenção da doença dos cidadãos detidos.

Um domínio que se nos últimos anos tem registado um agravamento significativo em resultado das modificações sociais profundas operadas na população prisional e dentro das nossas prisões, nas quais o panorama da saúde se tem degradado rapidamente e a necessidade de prevenir doenças, em especial as infecto contagiosas, tem ganho especial importância e actualidade.

Uma degradação cujas causas radicam, em primeiro lugar, no fenómeno da toxicodependência que atinge, de modo directo ou indirecto, a esmagadora maioria da população actualmente privada de liberdade e que enche as prisões portuguesas (cerca de 70% estima-se).

Um dado ao qual está associada a prevalência de consumos de drogas dos detidos em meio prisional .

Um fenómeno ao qual está intimamente associado o aparecimento de doenças virais e a sua propagação de que resulta uma elevada incidência de doenças infecto-contagiosas.

“Uma evolução nas doenças infecto-contagiosas que nos seus números tem sido alarmante”, assim o afirmava, já em 1999, o então Provedor de Justiça, no último relatório publicado sobre o estado das prisões portuguesas.

Dois dados de uma realidade que, como a Comissão Nacional de Luta contra a Sida ressalta, não podem deixar de ser interpretados em conjunto.

O que, por sua vez, tendo presente a grande mobilidade dos reclusos, a sobrelotação nas prisões (actualmente a rondar os 18%), a elevada percentagem de preventivos (muitos dos quais sem qualquer contacto com drogas) e a facilidade de transmissão destas doenças, exige no caso português, acrescida atenção, frontalidade e determinação na tomada de decisões políticas, que se quer sejam capazes de contrariar esta realidade.

A realidade dramática do ponto de vista de saúde, que é reconhecida por todos e que reclama, o próprio Governo actual o não desmente, pela voz da Ministra da Justiça, a necessidade de ensaiar novos passos, e que no caso concreto do Ministro da Saúde, não excluíam a troca de seringas em meio prisional.

Novos passos esses que o anterior governo chegou a equacionar e que, Sras. e Srs. Deputados, os Verdes propõem de novo convictos da sua vantagem a esta Câmara.

Passos que é bom sublinhar, não são isolados, nem medidas redutoras, só podem ser entendidos e úteis enquanto parte integrante de uma estratégia global de combate à toxicodependência e dentro desta na óptica da redução de danos e da prevenção de riscos, sem os quais o problema de saúde nas prisões, pelo seu dramatismo, se poder vir a tornar totalmente incontrolável, a muito curto prazo.

Novos passos, aqueles que vos propomos, de uma estratégia de prevenção que a Lei 170/99 (que teve origem um projecto de lei dos Verdes) já então tentava pela primeira vez no nosso país contemplar ao definir os meios de combate à propagação de doenças infecto contagiosas, como a hepatite C, a sida ou a tuberculose.

Medidas positivas de uma estratégia, que se tem revelado, contudo, limitada, muito restritiva e insuficiente na sua aplicação.

Medidas, dizia, que a dimensão assumida por estas doenças nas prisões, que é bom lembrar estão maioritariamente repletas de jovens ao atingir, por exemplo de forma terrível no caso da sida, cerca de 1/5 da população detida, ao abranger no tocante à tuberculose 5% dos cidadãos reclusos, ou ao contaminar já gritantemente 40% dos reclusos no que respeita à hepatite C e B, carecem de uma aplicação efectiva, mas obviamente também de um novo impulso.

O impulso que até agora, no que se refere à injecção assistida, e à distribuição e troca de seringas em meio prisional tem sido adiado e que nos propomos, com este projecto retomar, aprofundando o sentido e a amplitude da Lei em vigor.

Pretende-se, assim dar uma resposta institucional complementar, que previna riscos que advêm da partilha de seringas contaminadas pelos toxicodependentes reclusos.

Reconhece-se, por outro lado, que o problema da droga existe e é um dos mais delicados com que os sistemas prisionais, aí incluído o nosso, se confrontam em todo o mundo e têm de lidar.

Assume-se que em Portugal, como acontece aliás na generalidade dos países, circula e consome-se droga dentro das prisões.

Confronta-se, sem hipocrisias e com sentido de responsabilidade, um alarmante problema de saúde que marca, de forma particularmente dramática, gente reclusa muito jovem.

O que propomos é a adopção de uma medida, a da injecção assistida, ou dito de outro modo, da introdução de um sistema de troca de seringas em meio prisional, de há muito constante de múltiplas recomendações internacionais e adoptada em grande número de países nas suas políticas de redução de risco e prevenção de danos, em vigor.

Recomendações que já em 1997 o então Provedor de Justiça, Dr. Meneres Pimentel, propunha , ao afirmar e cito : “ Entendo que, sem prejuízo do combate à entrada e circulação de droga nas prisões, e tendo presente os números da toxicodependência e da incidência de doenças infecto-contagiosas nas prisões, a par de um juízo de prognose quanto à sua evolução, se deveria proceder ainda que a título experimental à criação nos estabelecimentos prisionais de instalações próprias para a administração a reclusos toxicodependentes de droga por via endovenosa, dispondo de assistência médica tendo em vista a redução de riscos, actualmente alarmantes de infecção resultante da partilha de seringas.”

Medida preconizada no relatório da Comissão de Estratégia de Combate à Droga, na sua análise do problema da prevenção de riscos inerentes ao consumo, ao propor na abordagem da questão, entre muitas outras medidas, e para além da metadona, programas de substituição a estender ao meio prisional, para o qual se recordava e cito “ a prometida e esquecida proposta de distribuição de seringas no interior das cadeias “.

Uma proposta que a Comissão Nacional de Luta Contra a Sida há anos recomenda dever ser adoptada e que o Relatório Anual Sobre a Evolução do Fenómeno da Droga na União Europeia identifica como medida com resultados bem sucedidos nos diferentes países que a têm ensaiado. Países como a Suíça, a Alemanha, ou a vizinha Espanha que foram capazes de reduzir, também por esta via, de forma muito substancial a incidência de danos para a saúde relacionados como o consumo de droga.

Uma via a ensaiar para a pretendida redução de danos que, em nossa opinião, mantém toda a oportunidade política, sobretudo após a publicação do relatório final do diagnóstico do ISCTE, sobre Trajectórias e Consumos de Drogas nas Prisões. Com efeito este estudo não obstante reconhecer, que pontualmente se verificam mudanças no modo como o consumo de algumas das drogas ocorre em meio prisional, caso da heroína, reconhece o peso que os consumos de drogas por via injectável, mantém em parte da população prisional, cerca de 27%, em especial nos estabelecimentos prisionais de menor dimensão e, no facto destes consumos só de forma residual serem feitos sem partilha de seringas, o que significa na esmagadora maioria das situações em condições de insegurança e risco de contaminação inaceitável.

Medida que pode revelar-se um contributo determinante se concebida e concretizada como parte de uma estratégia global de redução de danos.

O que “Os Verdes” vos propõem em concreto é que aos reclusos que formularem esse pedido possa ser facultado o acesso a compartimentos onde se possa, em caso de necessidade e sempre que esteja em causa a redução de danos e a prevenção de riscos, consumir por via endovenosa um estupefaciente.

O que propomos para esse efeito é a instalação de compartimentos específicos dentro do próprio estabelecimento prisional onde sejam garantidas condições de higiene e de segurança.

Uma medida que envolve os serviços médicos prisionais e depende da sua orientação e que é garantida, assim se propõe, sempre que se coloque a necessidade de redução de riscos e prevenção de danos.

Uma proposta que não dispensa, antes impõe ao contrário da actual situação, o acompanhamento médico do toxicodependente, com todas as vantagens que daí advêm para um melhor tratamento, reabilitação e futura reinserção social do recluso livre de drogas.

Por último, Sras. e Srs. deputados,

Uma medida que procura lidar e não fugir à única reserva séria que tem sido colocada, ou pelo menos colocada sempre que se alude à troca de seringas em meio prisional, refiro-me, à questão da segurança.

Uma reserva sistematicamente evocada, que apesar de basear num equívoco, o de que actualmente não haveria seringas a circular nas prisões (e é bom lembrar que só em Ponta Delgada foram em 1998 apreendidas 25), e de que a partilha actual não é em si mesmo um enorme risco, não deve ser inibidora na ponderação de soluções, sempre que possam revelar-se positivas.

Uma reserva contudo que ponderamos, daí o propormos que o toxicodependente recluso após a utilização da seringa no espaço próprio, deva restituí-la à saída, ficando assim ressalvada a questão da manutenção na sua posse de um objecto favorecedor da falta de segurança.

Sr Presidente,
Sras. e Srs. Deputados,

O projecto de lei que vos apresentamos é claro nos seus propósitos ao pretender combater as doenças infecto-contagiosas e prevenir riscos e danos, ou seja, ao pretender defender a saúde.

Não é obviamente, como não o pode ser numa aérea sensível como é a da toxicodependência, uma proposta fechada.

Assume-se como um começo, um ponto de partida para discutir e aperfeiçoar na especialidade.

Eventualmente ainda, um contributo político para que se opte experimentalmente por uma via, num combate contra a toxicodependência, que essa é a nossa convicção em nome dos direitos, em nome da saúde, em nome da vida, não pode permanecer adiado.

O combate que para os Verdes é também o apelo perante uma realidade tendencialmente esquecida. A das prisões, aquela que não obriga ao confronto quotidiano do olhar, aquela que é silenciada pelos muros que a cercam, aquela realidade, precisamente por isso, pelas suas características e daquelas que um dia nela mergulharam que requer ser compreendida, na óptica dos direitos humanos.

Como uma prioridade política que não pode ser desprezada.

Assim, e porque não queremos que cada recluso devolvido à liberdade se transforme num potencial condenado à morte, apelamos a que sem hipocrisias, se viabilize este projecto.

Disse.


Ver tambêm:

Projecto de Lei Nº. 58/IX Projecto de Lei- Altera a Lei n.º 170/99, de 18 de Setembro (adopta medidas de combate à propagação de doenças infecto-contagiosas em meio prisional)

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